Se bem que o lingueirão seja marisco que há o ano inteiro*, dependendo principalmente das marés a sua apanha, é durante o Inverno que se acede com mais facilidade ao lingueirão gastronomicamente mais interessante, quando deixam de aparecer à venda os grandes exemplares do fundo (Ensis síliqua), apanhados pelo arrasto, cedendo a vez aos outros lingueirões (Pharus legumen), pequenitos e de aspecto mais sujo, apanhados de dentro da areia lodosa por mariscadores a pé armados de um cesto e de um pacote de sal, nas planuras das nossas rias e estuários.
É este o lingueirão que nos interessa.
Tenro, de tamanho que dispensa cortes no prato e senhor de um sabor poderoso, dá um pouco mais de trabalho a arranjar, depois largamente compensado no palato, num arroz, numa açorda, numa massada, numa sopa, à bulhão pato ou mesmo aberto ao natural numa chapa quente, maneira que muitos preferem a todas as outras por pensarem ser a melhor e com alguma razão, já que raramente se apanha quem saiba cozinhar o lingueirão, marisco que, se cozer, fica com menos graça que uma ostra “bem passada”, ou seja, uma borrachinha custosa de trincar e engolir. Cozinhar bivalves é ciência dominada por poucos e o lingueirão será talvez o mais incompreendido de todos eles, logo o mais mal tratado. É que, cozinhar é algo que está muito para além de saber cumprir receitas; antes de tudo o resto, cozinhar é compreender os alimentos.
Ingredientes:
Lingueirão pequeno (Pharus legumen)
Cebola
Alho
Pimento vermelho
Pimenta preta
Louro
Açafrão (estames)
Azeite
Arroz de bago curto
Vinho branco seco
Coentros
Preparação:
Por muito que o vendedor lhe jure e algum selo ateste, este lingueirão pequeno nunca está realmente depurado e essa é uma operação essencial que terá de fazer à chegada a casa. Consiste em imergir os lingueirões numa imitação de água do mar que se obtém dissolvendo 40g de sal marinho (de preferência integral) em cada litro de água (se tiver acesso a água não tratada, melhor) e deixá-los nesse banho por cerca de doze horas,
durante as quais eles vão expelindo toda a areia lodosa que contêm e ficam finalmente prontos para serem cozinhados.Cozinhar um lingueirão é exactamente, como com qualquer bivalve, não o cozinhar! Assim que qualquer bivalve se solta da casca por acção do calor, muito antes de ferver, está pronto para ser comido, deve ser retirado da fonte de calor e tudo o resto se vai desenrolar em paralelo mas sem o incluir, aproveitando o líquido que largou quando morreu, cozinhando-se temperos e acompanhamento envolvente mas o bivalve em si, só volta ao convívio do arroz, da massa, do pão, da sopa, só no fim e fora do lume. É esta regra que permite desfrutar de todo o seu poderoso sabor a mar, sem que se torne coreáceo, seco e desagradável. É também por isso que, por melhores que sejam, quaisquer bivalves congelados são sempre uma enorme decepção gastronómica e valem bem mais uns humildes berbigões frescos que vieiras congeladas.
Dito o essencial (que se aplica a qualquer preparação) vamos então ao risotto que acompanhou estes lingueirões.
Após a depuração dos lingueirões, abra-os numa frigideira, sem os sobrepor, apenas uma fiada de cada vez, para que possa controlar o que se vai passando.
Mal existam lingueirões abertos,
retire-os da frigideira e com o auxílio de uma colher de chá, remova-os da casca e reserve-os, bem como o líquido que libertaram.Num fundo de azeite, refogue levemente o alho, a cebola e pimento vermelho, todos picados finamente e temperados de pimenta e louro.
Introduza o arroz e vá envolvendo até que os bagos se apresentem translúcidos.Junte então meio copo de vinho e os estames de açafrão, deixe evaporar em lume forte e vá então juntando o caldo que obteve dos lingueirões, sempre aos poucos e mexendo continuamente para que o arroz solte todo o seu amido. Quando não tiver mais caldo continue com água, durante o tempo que o arroz levar a estar cozido ou a seu gosto,
o que pode acontecer em 11-12m se estiver a usar Carolino, 16-20m se estiver a usar um arroz italiano para risotto, ou, no meu caso, 18m pois estava a usar um arroz espanhol muito usado nas paellas, o “Redondo”.Quando o arroz estiver cozido e o molho bem cremoso e abundante, rectifique o sal, retire do lume, junte os coentros picados e os lingueirões, envolva e sirva.
Nota: * Segundo a portaria n.º170-A/2014, o stock de longueirão, lingueirão ou navalha na zona Sul foi considerado pelo IPMA como sobre explorado, o que recomenda uma interdição da apanha desta espécie até que uma nova avaliação indique a recuperação dos bancos desta espécie. Assim, até ao final de Dezembro de 2015 é proibida a captura, manutenção a bordo e descarga de longueirão, lingueirão ou navalha (Ensis siliqua e Pharus legumen). Resta-nos assim algum lingueirão da apanha artesanal e o lingueirão que nos chega de Espanha, ode este pequenote tem fraca cotação e nos aparece nos mercados e um preço excelente.