Tanto eu como a
Ana ou o
Amândio, provavelmente concordaremos que não poderia existir um tema mais fácil e universal que o desta
111ª Trilogia: os
cereais.
Alimento maravilhoso que, pelas suas qualidades nutritivas e possibilidade de armazenamento e conservação ao longo de anos acabou por condicionar e mesmo moldar a história da nossa civilização, que bem pode ser descrita como a história estratégica da utilização dos cereais.
Esta utilização massiva e que não deixou ainda de crescer, torna os cereais omnipresentes, desde os consumidos directamente, os transformados e até os que, não pertencendo ao grupo, como as carnes, os lacticínios e até os peixes de aquacultura são na verdade criados a partir de cereais.
Com um leque assim vasto, difícil mesmo foi a escolha de um digno representante de tão nobre grupo de alimentos, isto até recordar
uma crónica de Virgílio Gomes onde há quase dois anos apresentou essa raridade transmontana, os cuscos, um alimento verdadeiramente em vias de extinção apesar de mais velho que a nacionalidade, supõe-se que introduzido pelos mouros e que terá sobrevivido na região de Bragança devido a permitir a utilização do trigo de Barbela, uma variedade local dura e muito rústica, com fraca capacidade para panificar.
A partir daqui foi a pura emoção da cozinha, uma alegria que só se sente quando a prática nos leva a redescobrir gestos milenares e a adivinhar o que se poderá ter feito em mil anos sem registo nas cozinhas graníticas das Terras Frias do Nordeste.
Foi assim a aventura que levou a estes Cuscos de Sustância:
Ingredientes:
Farinha de trigo (tipo 650, ou 65)
Água
Sal
Entrecosto
Entremeada
Couves galegas tenras
Chouriços e farinheira
Preparação:
Dissolva sal em água morna como faria para temperar um arroz.
Espalhe um quilo de farinha 65 (ou de trigo Barbela, se o tiver) num tabuleiro, faça uma “vassourinha” com palhas ou o que arranjar que faça esse efeito (eu usei folhas secas de erva Príncipe, que, na cidade, foi o mais parecido com palhas que consegui) e use-a para aspergir a farinha com pequenas gotículas de água.
Os movimentos devem ser enérgicos para que as gotas saiam dispersas e não se agrupem em gotas grandes.
Quando vir a superfície da farinha bem salpicada de gotas,
agite o tabuleiro de modo a que estas gotas fiquem englobadas na farinha
e repita por diversas vezes a operação.
Ao peneirar esta farinha*, irá ver na peneira pequenas esferas brancas, os cuscos,
que deverá espalhar numa camada mito fina para que não adiram entre si e pôr a secar ao sol. Como tem estado tempo de chuva nestes dias, utilizei o forno a 70ºC ventilados e porta entreaberta para fazer a secagem.
Se pretender usar os cuscos de imediato, eles poderão ser cozidos assim. No entanto, estes cuscos eram tradicionalmente pré-cozidos em vapor, secos de novo e ficavam assim prontos a guardar durante longos períodos, como uma massa seca. Já que estava na descoberta da tradição, decidi fazer o processo completo.
Com o auxílio de um tabuleiro perfurado adaptado a uma panela
e vedado com massa de farinha e água, cozi os cuscos previamente secos, em vapor até estarem brandos
e voltei depois a secá-los no forno a 70ºC.
Ficaram assim prontos estes incríveis percursores artesanais de todas as massas.
Tudo o que se seguiu até este prato memorável tem, face ao fabrico dos cuscos, um interesse relativo e não me vou alongar muito mais.
Entremeada e entrecosto com algumas horas de sal, longamente cozidos com um chouriço de carne e depois com farinheira da Guarda e chouriço fresco de sangue, forneceram o caldo rico onde os cuscos cozeram cerca de cinco minutos, sem ferver,
num pouco menos que o dobro do volume de cuscos.
Couves galegas tenras, cozidas também no caldo das carnes,
compuseram este prato que eu não sei se alguma vez foi feito, mas que é tão, tão bom, que vale mesmo a pena.
Nota: * Com peneiras, ou simples passadores de cozinha, de diferentes tramas, pode-se separar os cuscos por calibre, usando os mais finos para sopas e doces e os mais grossos para acompanhamento. Aqui, optei por separar apenas os de grão muito fino, que serão em breve uma sobremesa doce, e cozinhei os de grão médio e grande, juntos.