Quantcast
Channel: Outras Comidas
Viewing all 259 articles
Browse latest View live

Peixe-galo Alimado com Hortelã da Ribeira (Ceviche raro)

$
0
0
                Hoje, seja mercê do investimento do governo peruano na divulgação da sua culinária no mundo,  seja porque entrou no tenebroso rol das modas que vão percorrendo a restauração e o mundo associado das receitas mais ou menos mediatizadas, o certo é que não há “esquina” em que não nos deparemos com algo a que alguém chama “ceviche”.
O cevicheé um prato não-canónico, como todos os pratos de origem popular, e a sua única característica é ser o peixe ou marisco crus cozinhados pelo ácido cítrico do sumo das limas ou limões, originalmente até que as proteínas coagulassem, nisso diferindo dos nossos alimados em que esse papel do ácido cítrico é substituído pelo ácido acético dos vinagres.
Hoje, a tendência geral de simplificação quase que acabou com essa prática e os ceviches por todo o mundo são apresentados como peixe efectivamente cru apenas temperado pelo sumo cítrico durante segundos, perdendo-se assim a delicadeza obtida pela cocção cítrica e ganhando-se essa “vantagem” que é hoje por quase todos incensada, a rapidez de preparação em vez das duas horas dos ceviches originais. Na época da pressa e do lucro, ganhou o ceviche cru!
Para mim, que não tenho de despachar ceviches para conseguir servir muitos clientes antes da hora de fechar e que nunca esqueço o tempo como ingrediente essencial do que cozinho, um ceviche (como um alimado) é um prato de peixe cozinhado e não um prato de peixe cru temperado com um sumo ácido durante dois minutos. Este que hoje vos trago e que ficou a raiar o divino, associou o portuguesíssimo sabor de um tempero injustamente esquecido e que, apesar de alentejano, parece ter sido criado de propósito para acompanhar peixe: A Hortelã da Ribeira.

Faço ceviches com muitos peixes, como aqui tenho deixado ao longo dos anos mas nenhum me satisfaz com a intensidade do ceviche de Peixe-Galo. A sua carne firme e de sabor único, normalmente associada aos filetes, transforma o habitual prazer de um cevichenuma experiência celestial.

Ingredientes:

Peixe-Galo
Sal
Pimenta
Sumo de limão (ou de lima)
Hortelã-da-Ribeira
Chalota
Malagueta
Pimento vermelho

Batata
Azeite
Flor de poejo fresca
Flor de sal

Preparação:

Compre um peixe-galo  inteiro, isto é, que tenha tripas e ovas,
rejeitando aqueles que se apresentam já eviscerados e com um golpe ventral, sinal de menor frescura pois são animais que foram importados ou, pelo menos, que passaram já pela manipulação da retirada das ovas para serem transformadas em sucedâneo de caviar pela indústria espanhola.
Esfole
e retire os filetes (ou mande fazê-lo),
depois corte-os em cubos com cerca de 1-1,5cm de lado.
 Junte o resto dos ingredientes partidos,
tempere, misture, e cubra com sumo de limão. Deixe marinar durante cerca de duas horas* , durante as quais o peixe vai passar por uma transformação dramática, desde o translúcido inicial de peixe cru
ao magnífico nacarado branco final do ceviche pronto.

Servi com um puré de batatas trasmontanas esmagadas a garfo e misturadas com flores de poejo, azeite virgem
e flor de sal no fim.

Notas: * Se quiser seguir a onda moderna e apresentar o seu cevichecomo hoje se come em praticamente todo o lado, abrevie as duas horas para um ou dois minutos. A carne firme do peixe-galo é também excelente comida crua.




Carne ó Caldeiro

$
0
0

              Entre o encanto do simples e a decepção do que é apenas simplório, há um abismo de diferença que tudo separa e define, na vida, como nas cozinhas.
Esta “Carne ó Caldeiro”, prato maior da Cozinha Galega, que uma primeira vista apressada se diria ser carne de vaca cozida em água, com batatas cozidas nessa água, é bem o exemplo dessa simplicidade que esconde  aquilo que o torna inimitável, os ingredientes únicos que o fazem obrigatório em qualquer mesa de festa ou romaria desse tão querido bocadinho do Norte de Portugal a que os livros e as leis chamam espanhol, mas que nós, que a amamos e por lá andamos, nos caminhos e com as gentes, bem sabemos ser de alma portuguesa: a Galiza!
A “carne ó caldeiro” só se pode fazer com ingredientes galegos, sob pena de ficar um prato simplório, outra coisa qualquer que não esse prato que María Luisa Ybañez descreve como tendo tido origem no hábito dos romeiros da Festa do Boi de Allariz, perto de Ourense, levarem pedaços de carne crua atada por um fio e que era cozida em caldeiro comunitário, cada um tomando conta do fio que prendia o seu bocado de carne.
Para recriá-lo como lá se come, não estando lá, a solução é usar aqueles preciosos ingredientes de primeira qualidade, tão bons deste como daquele lados da fronteira: carne Barrosã, batatas caseiras de Trás-os-Montes, unto, pimentão fumado “de la Vera”, o sal e o azeite, esses podem ser de qualquer lado.

Ingredientes:

Carne de vitela Barrosã, (aba, chambão, peito…)
Unto*
Batatas caseiras, de altitude
Pimentão em pó, “de la Vera”**
Azeite virgem
Sal grosso
Flor de Sal

Preparação:

Não poupe na qualidade da carne. Em Portugal, as carnes que se equiparam à carne galega, são as Barrosã, a Maronesa e a Mirandesa, tudo carnes criadas em altitude e por isso bem diferentes de outras carnes também excelentes mas de planície e que não servem para este prato.
As batatas galegas, tal como as transmontanas, 
são feias mas únicas de sabor e textura e são parte obrigatória da “carne ó caldeiro”.
Usei carne Barrosã e batatas caseiras da região de Chaves.
A preparação é elementar: parta a carne em pedaços grandes, de modo a que cada pessoa coma dois ou três, cubra de água
e coza com pouco sal e acompanhada por um pedaço de unto, durante cerca de uma hora e meia, tapada e com lume mínimo.
Quando a carne está já muito tenra, retire-a e coza no caldo as batatas partidas ao meio.

Sirva a carne acompanhada das batatas cozidas no seu caldo, salpicadas com Pimentão “de La Vera” e regadas com azeite.
Em princípio, o pouco sal inicial foi suficiente para, ao reduzir o caldo, ter ficado a um nível ajustado. Se achar insonso salpique com palhetas de flor de sal.

Nota: * Unto é toucinho da barriga, salgado por muito tempo, de modo a tomar uma coloração amarelada e um sabor algo rançoso, que é o toque deste prato. Se não gostar desse toque ou não arranjar unto, use um pedaço de toucinho gordo, salgado.
** Pimentão “de La Vera” é um tipo de pimentão doce em pó, fumado naturalmente durante o processo de secagem do pimento e essencial em muitos pratos das cozinhas galega e também espanhola. Em Portugal pode  adquirir em lata em supermercados de origem espanhola
ou, a melhor que conheço, avulso na feira semanal de Badajoz, aos Domingos.

Flor de Sal (produzir)

$
0
0
                Há muitos anos, quando ainda ninguém se tinha lembrado de refinar o sal das salinas, este era um produto mais ou menos sujo e acastanhado pela inevitável inclusão da argila que compõe o fundo dos tanques das salinas.
Para satisfazer cozinhas e mesas ricas, tiravam-se então aqueles cristais que se iam formando à superfície da água salgada dos tanques em dias de calor e que, nunca tocando no fundo, saíam limpíssimos e brancos como neve. Chamavam-lhe “flor do sal” e, com a chegada das refinações de sal da era industrial caiu num quase esquecimento até que há poucos anos, algum marketing salineiro aliado à insaciável sede de novidade de alguma gastronomia a fez renascer das cinzas e tornar-se num dos produtos mais desejados e míticos das nossas mesa e cozinha.
De facto, não há qualquer diferença qualitativa entre sal e flor de sal, a não ser no tamanho dos cristais, grandes para o sal comum e pequeníssimos no caso da flor de sal, o que não invalida que a flor de sal tenha um comportamento organoléptico claramente superior ao do sal comum, por mais fino que este seja e também que seja absoluta tolice o uso de flor de sal, um produto caro, para qualquer outro fim que não seja um tempero de cobertura, em que não vai haver dissolução antes de ser comido, já que flor de sal dissolvida é...sal.
O processo de produção da flor de sal nas salinas, pode ser facilmente recriado em nossas casas, dando origem a um produto de altíssima qualidade e a um preço irrisório.

Ingredientes:

Sal não-refinado (1kg)
Água (2,5l)

Preparação:

Leve ao lume a água e o sal. Deixe ferver uns minutos, mexendo sempre para facilitar a dissolução, após o que obterá uma solução fervente saturada com algum sal no fundo que a água já não consegue dissolver.

Ponha o calor no mínimo e deixe em repouso, o que levará a que dentro de alguns segundo se comecem a formar à superfície cristais pequenos como pó
que vão confluindo até formar uma placa superficial de sal, a flor de sal.
Com o auxílio de uma rede fina (usei um passador de chá) vá retirando esta fina placa,
enxugue o exterior da rede num papel absorvente para retirar o excesso de água e vaze as palhetas numa superfície seca.
Volte ao tacho onde já está formada uma nova película, retire-a, etc.
Seque ao sol a flor de sal assim formada,
guarde num recipiente fechado, já que o sal integral, pela presença de cloreto de magnésio, tem tendência para absorver água a partir do ar e ficar húmido.


.

Tapiocão

$
0
0
                  Chamei-lhe Tapiocão e é um doce de colher surpreendente que alia o sabor do portuguesíssimo arroz doce com uma textura totalmente nova para os nossos hábitos palatais e uma agradável surpresa no que toca a calorias.
Concebi-o tendo em conta essa usura tão comum em tantos outros doces populares, o uso parcimonioso do açúcar, às vezes apenas no exterior mas dando doçura a um conjunto que o poupa; estou a pensar em farturas, em quase todos os fritos da consoada, nas farófias, tantos outros.
No tapiocão, enche-se a colher e a boca com essas grandes e estranhas bolas de amido de mandioca, todas elas textura e sabor neutro, mas envolvidas pela suave doçura  bem nosso conhecida do creme de arroz doce.
O resultado, um doce com menos de metade da quantidade de açúcar de um arroz doce mas com o mesmo nível de doçura aparente, vale realmente a pena.

Ingredientes:

Tapioca (muito grossa)
Água

Leite
Açúcar
Casca de limão
Farinha de arroz
Gemas
Canela em pó

Preparação:

Leve um litro de água ao lume e, quando ferver, deite-lhe dentro uma chávena de tapioca muito grossa.
Ao retomar a fervura, baixe o calor para mínimo, mexa e deixe cozer até que as bolas de tapioca deixem de mostrar o interior branco e fiquem transparentes como vidro.
Arrefeça com água fria e reserve.
Ferva meio litro de leite com uma casca de limão e deite-lhe então três colheres de sopa de farinha de arroz previamente desfeita num pouco de água. Deixe engrossar, junte duas gemas,
leve de novo ao lume por um minuto, mexendo sempre e finalmente junte a tapioca escorrida.
Passe para um recipiente de serviço
e polvilhe de canela depois morno.
Coma morno ou frio.


Umas Migas Gatas

$
0
0
                 Estas migas gatas pareceram-me álibi perfeito para falarmos um pouco sobre essa imensa e generalizada confusão entre História da Cozinha (ou Cozinha Histórica) e Cozinha Tradicional, conceitos que encerram em si aspectos quase antagónicos mas que teimam em ser misturados, apesar de imiscíveis, num amálgama infeliz que muito mal tem trazido à gastronomia portuguesa. Dessa persistente confusão entre o que é do domínio da História, felizmente imóvel, e o que é do domínio da Tradição, felizmente dinâmica, têm nascido incontáveis tentativas normalizadoras de pratos que, sendo do domínio popular e das cozinhas familiares, apresentam, a partir de uma matriz comum que as denomina, incontáveis variantes e para os quais qualquer normalização é forçosamente redutora e empobrecedora.
É por isso que quando falamos de cozido à portuguesa, pastéis de bacalhau, pataniscas, meia-desfeita, peixinhos da horta, arroz de pato ou migas gatas, estamos a falar de cozinha tradicional, cuja principal virtualidade é precisamente o modo como a tradição do prato se foi modificando e adaptando às pessoas e aos tempos e que, refractários a normalizações canónicas e às chamadas receitas “fixadas”, explodem nas criatividade e dinamismo que fazem a cozinha viva de um povo. Só dentro da minha família e na da minha mulher, pude contar seis maneiras de fazer os pastéis de bacalhau, todas boas e todas diferentes da receita que alguém “fixou” há anos mas que nem por isso fixou o modo como cada um faz os seus pastéis de bacalhau, nem tão-pouco fez com que existam pastéis de bacalhau “certos”, apenas bons ou maus.
Já na cozinha histórica, a tal que tantos teimam em chamar “tradicional”, a questão é, precisamente, a preservação de uma receita, a reconstituição de uma época culinária, toda uma museografia culinária cuja principal virtualidade é precisamente o rigor e a inflexibilidade de métodos e ingredientes, garante de que serão na boca, exactamente aquilo que o seu nome promete: Bacalhau à Brás ou à Gomes de Sá, Carne à Mercês, Tripas à Moda do Porto, Pudim Abade de Priscos ou Pão de Rala. Isto é Cozinha Histórica; posso recriar a partir dela mas nunca apropriar-me dos seus nomes!
A cozinha tradicional popular alentejana, repositório do que se foi inventando em séculos de fome e privações, fazendo autênticos milagres gastronómicos a partir de quase nada, teve no pão e no seu aproveitamento a sua grande base. As açordas (sopas de pão) e as migas (massas recozidas de pão duro e água), formam um bloco em que com pão, água, sal, azeite, uma ou outra erva aromática, algum ovo, toucinho da salgadeira anual ou peixe seco, quando os havia, se fizeram uma miríade de sabores simples e poderosos que ainda hoje nos arrebatam e encantam, como estas migas gatas, que cada família apurou a partir da sua base comum de pão, bacalhau e azeite, numa sabedoria de texturas e sabores mais ou menos complexos mas sempre migas gatas. Estas, feitas pela minha filha Inês a partir do que há dias viu fazer em cozinha eborense de amigos, evoluíram segundo a história e preferências daquela família, num ano alguém não quis o bacalhau e fez-se um ovo, noutro ano houve quem quisesse os dois, o prato hoje vai assim, misto entre as migas gatas mais tradicionais do Alentejo e a “miga recheada” da Beira Alta, sendo o exemplo daquilo que é, afinal,  a Cozinha Tradicional.

Ingredientes:

Pão alentejano, duro
Postas de bacalhau demolhado
Ovos
Azeite
Alhos
Sal

Preparação:

Coza postas altas de bacalhau, levando-as ao lume em água fria
e interrompendo o processo mal a água comece a querer borbulhar. Lamine alguns dentes de alho sobre pão alentejano cortado em fatias e que esteja num recipiente que permita o escoamento, dentro de outro que permita recuperar o líquido sobejante. Estrele ovos em azeite e reserve.
Retire as postas de bacalhau para uma travessa de serviço e regue o pão com o caldo fervente,
com o sal rectificado tendo em conta o sal que o bacalhau deixou na água. Repita com a água que escorreu, as vezes necessárias a que o pão fique bem molhado. Passe para uma tigela, junte o azeite onde estrelou os ovos e desfaça o pão com uma colher de pau,
de modo a que fiquem ainda nítidas as côdeas.
Sirva as migas gatas com o bacalhau e o ovo estrelado, tudo regado com um fio de azeite cru.


Tomatada

$
0
0
                 Os tomates dão-se muito mal com o frio.
Essa verdadeira incompatibilidade visceral e irremediável é o que faz serem impossíveis nas estações frias pratos como esta tomatada, um gaspacho ou uma simples salada de tomate decente, sendo apenas nalguns casos possível o recurso ao tomate enlatado, o único que, de Inverno, guarda essa qualidade preciosa que só o sol de Verão pôde dar e que mesmo a congelação, por ser fria, consegue destruir no tomate: o seu portentoso sabor.
Infelizmente, o acesso a tomate verdadeiramente maduro é um bem que vai sendo cada vez mais difícil de obter, já que nas cidades, quem se abastece normalmente em supermercado, passa toda a estação a consumir tomates de produção normalizada em estufa, artificialmente “amadurecidos” durante o longo processo que medeia a colheita e a chegada aos lineares, refrigerados e pálidos (ou geneticamente “vermelhos” como esta variedade em cacho, que tanto promete mas que nunca deixa de decepcionar).
Se tem acesso a tomates menos normalizados, mais feios, rugosos e bem vermelhos, que se vendem em algum comércio local e nos mercados das cidades, na província ou pela mão de algum amigo produtor, ou do seu próprio quintal, aproveite esta estação bendita para usar e abusar deste fruto precioso   e não esqueça o que aqui se disse logo a abrir: nunca, mas mesmo nunca, sujeite qualquer tomate, seja ele um daqueles grandes “coração” ou um pequeno cherry a uma estadia no frigorífico, guarde-os cá fora numa fruteira ou tijela à temperatura ambiente, sob pena dele se vingar e largar para o frio todo o seu sabor.

Ingredientes:

Tomates maduros
Cebola
Alhos
Azeite
Sal e pimenta
Pão e água

Ovos
Farinheira
Chouriço

Preparação:

Tal como para um gaspacho, também para a tomatada o êxito prende-se com a qualidade dos ingredientes, razão porque é lá, no Alentejo profundo e com produtos genuínos da terra que se comem as melhores tomatadas.
Aqui, use tomate amadurecido na planta e que nunca tenha sido refrigerado.
A preparação é a de um refogado: pele os tomates e leve-os ao lume com azeite, cebola, alho, sal e pimenta.
Se quiser, pode introduzir alguma erva aromática a seu gosto, coentro, ou poejo, hortelã-da-ribeira, embora eu prefira deixar simples, o sabor poderoso do tomate a dominar o prato.
Deixe fritar, mexendo de modo a que o tomate se vá desfazendo e a cebola e alhos fiquem cozinhados, acrescente água, 
rectifique sal e verta sobre pão alentejano duro cortado em falhas.
Frite uma farinheira e rodelas de bom chouriço (linguiça) num pouco de azeite
onde depois estrela* um ovo por comensal.

Sirva com o ovo por cima e rodelas dos enchidos fritos.



Nota: * Usualmente este ovo é escalfado, mas preferi estrelá-lo por achar que ia melhor com os enchidos fritos. Não me arrependi.

Ventresca de Atum em Cebola

$
0
0
             “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”; ainda bem!
Até há poucos anos considerada como peça menos nobre do atum, dada a quantidade de gordura que apresenta, a barriga era excluída das partes enlatadas e relegada para a salmoura em barricas de madeira e venda avulsa e barata.
Depois, a globalização geral e o conhecimento de outras gastronomias levaram a que se atentasse melhor nos motivos que faziam que fosse o pedaço dos tunídeos preferido pelos exigentes japoneses, o marketing das açorianas Santa Catarina e Corretora e depois da maioria das marcas conserveiras, inverteram as coisas e hoje, a barriga de atum, rebaptizada com o nome espanhol de “ventresca” para  afastar a memória das velhas barrigas de salmoura, tornou-se a parte mais cara e desejada de um atum e bem, já que a sua textura e delicadeza de sabor a tornam realmente insuperável.
A oferta de barrigas frescas de atum é por vezes escassa mas vão aparecendo em alguns mercados, embaladas a vácuo e provenientes dos Açores, sendo o seu preço, por enquanto, bastante acessível.

Ingredientes:

Barriga fresca (“ventresca”) de atum
Sal, pimenta e raspa de limão
Cebola
Alho
Louro
Vinho do Porto, tawny
Vinagre balsâmico

Preparação:

A barriga de atum vende-se com pele, em peças que vão de 1 a 3kg, sendo que a excelência aumenta com o tamanho e, consequentemente, com a idade do atum e com a quantidade de gordura.
Se tiver escolha, prefira as barrigas mais claras, já que no atum, quanto mais pálida for a carne, melhor.
Com uma faca bem afiada retire a pele à barriga.
Tempere pelos dois lados com sal grosso, pimenta e raspas de limão e deixe por uma hora.
Entretanto caramelize cebola branca, levando-a ao lume com louro, sal, pimenta e alho picado, num fundo de azeite.
Quando estiver já mole e translúcida, acrescente um gole de vinho do Porto (ou Madeira, ou outro doce a seu gosto), que será responsável pelo açúcar e irá facilitar a caramelização da cebola.
Deixe caramelizar até obter uma cor âmbar uniforme e termine com um golpe de vinagre balsâmico. Escorra e reserve.
No azeite em que caramelizou a cebola vai então cozinhar a ventresca, depois de dividida em cru nas porções individuais,
o que significa passá-la rapidamente dos dois lados, em lume forte, de modo a que as lascas abram mas que o interior fique ainda rosado.
Isto é essencial e obtém-se com cerca de 1-2 minutos de cada lado. Vá vendo a progressão do cozimento pela face lateral.
Sirva sobre a cebola, montada numa fatia de pão levemente torrado.

  

Uma polenta

$
0
0
          O milho é cereal que aguenta quase todas as maldades que lhe façam, excepto a da pressa.
Se há comida injustiçada, será por certo a polenta que, num século, passou de prato principal e por vezes único nas mesas populares portuguesas para a ínfima posição de acompanhamento pitoresco ou de pratos vagamente regionais e ressuscitados após meio século de olvido, durante o qual toda a gente que a sabia fazer morreu, deixando muitas polentas de hoje, mesmo feitas por mãos “estreladas” de alguns restaurantes da moda, algo desmaiado e sem sabor próprio, fruto de uma grande dose de pressa, que, no caso das polentas, é o mesmo que dizer incompetência. 
Deste triste estado de coisas vos dei já conta aqui e aqui e não é mais altura de repisar o já dito, até porque a polenta é, tal como as açordas de quem é afinal parente próximo, uma preparação que se presta como poucas à evolução, à criatividade e à imaginação, permitindo construir à sua volta uma infinidade de variações, quer como prato, quer como acompanhamento ou até sopa.
Esta que aqui vos deixo serviu como delicioso acompanhamento a um peixe frito, mas teria podido facilmente ser prato principal, por exemplo se esse mesmo peixe lhe tivesse sido incorporado.

Ingredientes:

Farinha de milho amarela
Azeite
Tomate seco, em azeite
Pimento maduro
Coentros frescos
Sal e pimenta

Preparação:

Misture bem uma pequena quantidade de farinha (ou carolo) de milho com uma grande quantidade de água, pense em algo como 50g de milho para meio litro de água e desfaça bem qualquer grumo que se tenha formado. Leve ao lume até ferver, com sal, o que provocará um ligeiro espessamento.
A maioria das receitas modernas dir-lhe-á que está a farinha cozida, mas na verdade o processo ainda nem começou. Tape e reduza o calor ao mínimo e deixe a fervinhar por cerca de uma hora, mexendo de tempos a tempos para evitar que pegue ao fundo. Durante este tempo a farinha vai então cozer de verdade e verá formar-se um creme grosso como um puré de batata, com o característico aroma do milho cozido.
Enquanto o milho coze, frite em azeite alhos, pimento maduro  e tomate seco, tudo picado fino e temperado com pimenta.
Misture com a polenta junte por fim os coentros frescos.
Deixe a polenta absorver e misturar em si todos estes sabores e sirva como acompanhamento ou como prato, incorporando-lhe nesse caso uma carne, peixe ou enchidos.



Arroz de Bacalhau com Grelos

$
0
0
             O arroz de bacalhau encarado como prato tem vindo a perder popularidade, sendo hoje praticamente impossível encontrá-lo na restauração popular e, por maioria de razão, ainda menos na outra menos popular e que só por curiosidade ou procura do pitoresco se debruça sobre estes sabores tidos por pobres e simples.
Chamados muitas vezes “pratos de fim de mês” estes arrozes feitos com o que havia em casa quando já não havia com que ir ao avio, têm no entanto o encanto das comidas de conforto e, no caso do bacalhau, são hoje uma maneira excelente de utilizar as partes mais finas e menos nobres de um bacalhau, quando por vezes até parece que já só se conhecem os lombos.
Esta associação do bacalhau com os grelos de nabo resulta particularmente feliz e faz deste arroz malandro que pede para ser comido devagar uma festa para o paladar.

Ingredientes:

Arroz de bago curto
Bacalhau
Grelos de nabo
Azeite
Tomate
Cebola
Alhos
Louro
Malagueta
Sal e pimenta
Vinagre (facultativo)
Fécula ou farinha de arroz (eventual)

Preparação:

Coza o bacalhau e reserve o caldo resultante da cozedura. Retire peles e espinhas (ou só as espinhas se todos os convivas gostarem de pele) e parta o bacalhau em lascas e pedaços grandes. Reserve no frigorífico, de modo a que esteja bem frio no final da confecção do prato.
Faça um refogado normal, em azeite.
Deixe apurar e introduza então o arroz que deve ser de grão curto e apto a largar uma quantidade apreciável de amido para o caldo. Usei arroz Redondo,
uma variedade espanhola especialmente resistente à cozedura e que cresce muito, absorvendo todos os sabores do caldo, mas pode ser usado o incomparável Carolino, apenas precisa de maiores cuidados no ponto de cozedura. Envolva bem, mexendo sempre até que os bagos se apresentem translúcidos.
Junte então um golpe de vinagre (se está a usar tomate maduro e bastante ácido, isso pode ser desnecessário), mexa e comece então a juntar, aos poucos, a água em que cozeu o bacalhau, mexendo sempre entre cada adição, como se fosse para um arroz “italiano”.
Isto permite que o arroz vá soltando amido e engrossando o caldo. Quando o arroz estiver sensivelmente a meio da cozedura, junte então os grelos previamente escaldados
e continue até o arroz estar no ponto de cozedura ideal, isto é, nem aberto, nem com um desagradável núcleo duro. Isto pode variar muito consoante o tipo de arroz usado, desde os 12-13minutos do Carolino aos mais de 20m do Bomba ou aos 19m deste Redondo que usei. Nesta altura o caldo deve ser abundante e bem cremoso, nada de aguadilhas líquidas a escorrer no prato como se fosse uma sopa. Arroz malandro não é isso! Essas “aguadas” são simplesmente arrozes mal feitos!
Se o seu arroz, no momento em que se apresenta cozido está seco, tem de lhe juntar mais líquido; se, pelo contrário, está aguado, então tem de corrigir esse aspecto e não o poderá fazer continuando a ferver o arroz que acabará por abrir e transformar-se numa papa. Como a falta é de amido de arroz, então terá de juntá-lo e é para isso que há farinha ou fécula de arroz à venda. Dissolva uma colher de sopa num pouco de água e adicione aos poucos ao arroz de modo a que o molho se torne espesso e aveludado, envolvendo os bagos mas sem escorrências pelo prato.
É o grau de cozedura do arroz que manda parar a fervura, não a consistência do caldo. Para parar prontamente a fervura há que baixar drasticamente a temperatura e é isso que vai fazer o bacalhau gelado que guardou no frigorífico, lembra-se?
Junte-o ao arroz e mexa de imediato.

Sirva sem grande demora pois a tendência de qualquer arroz é para ir secando.

  

Ras-el-Hanout

$
0
0
              Qualquer abordagem à portentosa cozinha marroquina passa inevitavelmente por uma mistura de especiarias que é a pedra de toque daqueles sabor e aroma especiais que tornam inconfundíveis os pratos marroquinos, mesmo em comparação com outras cozinhas magrebinas próximas: o Ras-el-Hanout.
Traduzindo “ras-el-hanout”, teremos algo como “o melhor da loja” ou, mais livremente, “topo de gama”, embora não exista nenhuma fórmula, nem qualitativa, nem quantitativa que o defina, existindo sim tantas composições quantos os preparadores, sendo mesmo vulgar que seja a própria cozinheira que prepara a mistura a seu gosto, como aliás se passa com qualquer das mais famosas misturas de especiarias, o caril, o tandoori, a dukkah, o Garam masala ou o Shichimi Togarashi.
Encontrei nas minhas visitas a Marrocos, Ras-el-Hanout desde 5 a 51 componentes, tendo nestes mais “emaranhados” a presença de elementos estranhos ao mundo dos sabores, como por exemplo a mosca cantárida, um afrodisíaco tóxico com que muitas vezes o vendedor tenta apimentar o seu produto, seja ou não verdade que a tal mosca lá está.
Sempre que lá vou, trato de me abastecer em quantidade e qualidade, tendo até já fornecedores habituais em Marraquexe e Marzagão.  Há, no entanto, uma dificuldade inultrapassável: as misturas de especiarias são, ainda mais que as especiarias isoladas, extremamente sensíveis à passagem do tempo e, na verdade, três ou quatro meses depois da compra, a qualidade é já manifestamente afectada e seis meses depois aquele que tinha sido um garboso Ras-el-Hanout, está pronto para ir para o lixo. Tentei todos os truques, o vácuo, a congelação e nada!
Se não vai trimestralmente a Marrocos, resta-lhe comprar online, sujeitando-se ao que lhe sair, ou então fazê-lo, que é o que eu faço; dá algum trabalho mas compensa. Esta receita que vos deixo, começou por ser uma “21 épices”, fornecida no meio de indescritíveis dificuldades linguísticas (ele só fala árabe!) pelo meu fornecedor de Marzagão. Um ano depois, perante as dificuldades insuperáveis que tive em obter alguns dos componentes, ele baixou a fórmula para “17 épices”, todas de fácil obtenção em Portugal e o resultado é soberbo. Aconselho a preparação em muito pequenas quantidades, já que o tempo, tal como para os de compra, também vai passar sobre o nosso Ras-el-Hanout.  

Ingredientes:

"17 épices"


10 g de raiz de cúrcuma (açafrão das índias)
7 g de raiz de gengibre
3g de paprika
2 g de pimenta branca
2 g de pimenta preta
2 g de bagas de pimenta da Jamaica
3 g de vagens de cardamomo (só as sementes)
6 g de canela
1,5 g cravinho inteiro
1,5 g macis
1,5 g de malagueta
2 g de cominho sementes
1,5 g de sementes de anis
1,5 g de coentro (sementes secas)
1,5 g de sementes de funcho
1 noz-moscada ralada
0,1 g açafrão, estames ou 1g de açaflor

Preparação:

Leve ao lume numa frigideira seca as pimentas, o funcho, o cravinho, as sementes de cardamomo e os cominhos, para tostar sem queimar.
Retire de imediato, do calor e da própria frigideira, assim que sentir o inconfundível aroma dos cominhos aquecidos.
Junte todas as sementes inteiras no almofariz ou no processador e moa até ficar em estado de pó fino.
Junte depois os ingredientes já moídos e misture muito bem.
Passe por uma peneira fina para reter umas palhas que sempre ficam e guarde em frasco hermético, no frigorífico, com data no rótulo.
Utilize no prazo de 2-3 meses, após o que deve perder a pena e deitá-lo fora.

O prazer de fazê-lo de novo, com a sinfonia de aromas a perfumar toda a casa, faz com que se deseje que o tempo passe depressa.

Lavash

$
0
0
            A origem do pão lavash perde-se na noite dos tempos e deve ter ocorrido na Arménia, tendo-se depois espalhado por toda a Ásia Menor e Próximo Oriente, onde continua a ser usado diariamente e tem nomes como lavas, lavosh e matzo (Israel). É o pão ázimo que Cristo comeu e distribuiu no episódio bíblico da Última Ceia, de umas pobreza e simplicidade mais que espartanas, mas que, ao contrário do que a sua composição possa fazer supor, é uma preparação maravilhosa, quintessência do crocante e da leveza.
Placas de pão finíssimas, na verdade com menos de um milímetro de espessura, simples ou enriquecidas com o que quisermos, o lavashé algo que está à nossa disposição nas mais exclusivas lojas gourmet mas também ao alcance, quase grátis, na nossa cozinha, já que não difere em substância da nossa conhecida massa tenra.

Ingredientes:

- Lavash-base

Farinha
Gordura
Água
Sal (facultativo)

- Lavash de sésamo e papoila*

1 medida de farinha de trigo
½ medida de farinha de trigo integral
¼ de medida de azeite
1/10 de medida de óleo de sésamo
¼ medida de sementes de sésamo
¼ de medida de sementes de papoila
¼ de medida de orégãos
Sal q.b.
Água q.b. (+/- ½ medida)
Flor de sal

Preparação:

Misture os secos 
e depois as gorduras
e água q.b. (cerca de meia medida) e amasse bem até obter a consistência elástica característica de uma massa tenra.
Divida em porções mais pequenas
e estenda com o auxílio de um rolo ( e talvez um pouco de farinha salpicada) até obter uma folha realmente finíssima.
Salpique com flor de sal, corte com uma carretilha ou um cortador para  pizza, em rectângulos
e leve ao forno a 160ºC durante breves minutos, até obter uma cor levemente dourada.
Podem guardar-se por muito tempo em caixas herméticas, de modo a conservarem o maravilhoso estaladiço, embora seja virtualmente impossível fazer durar muito esta delícia, para a qual há sempre uma desculpa, simples,
como aperitivo, com um paté, uma marmelada, um tapenade, estas lavash voam e não tarda chega o momento de fazer mais!
  
* As possibilidades de variação são virtualmente infinitas. Pode introduzir no lavash-base aquilo que lhe apetecer, sementes, frutos secos, especiarias, ervas frescas, tendo apenas que ter cuidado com a granulometria do que introduzir; por exemplo, se decidir introduzir sementes de girassol inteiras na massa, o rolo passa a ter essa bitola, a dimensão das sementes, e a folha ficará muito grossa.
Se quiser fazer lavash doce, deve polvilhar de açúcar mesmo antes de ir ao forno, pois se introduzir o açúcar na massa ela perde as suas características de pão.
  

Pato confitado ( confit de canard)

$
0
0
             Se é verdade que a carne de pato é das minhas preferidas, não é menos verdade que não a consumo de maneiras muito variadas.  “Magrets” para a suculenta carne dos peitos e o arroz de pato tradicional feito com o que sobra do bicho, a carcaça e as pernas.  Mas claro que há muitas outras maneiras de preparar pato. É precisamente com as pernas e com a abundante gordura que os patos normalmente trazem que faço, por vezes, esta deliciosa receita francesa que nasceu dos tempos remotos da penúria alimentar e que, tendo começado por ser uma conserva, tornou-se depois uma iguaria: o confit de canard ou, em português, pato confitado.
Como originalmente era mesmo para se conservar, este pato passava por um período de salga que lhe conferia esse sabor e textura tão especial. Hoje, apesar de, geralmente, o confit se destinar a ser consumido de imediato, essa operação prévia mantém-se, apesar de tecnicamente desnecessária.

Ingredientes:

Pernas de pato
Gordura de pato
Sal
Batatas
Pimenta
Alhos
Salsa
Alho francês
Grelos de nabo

Preparação:

Compre patos gordos e vá juntando toda a gordura, já que a gordura de um só pato não é suficiente para o confit. Também se pode comprar gordura de pato para este efeito mas é bastante cara. Depois de extraída, a gordura de pato mantém-se por muitos meses no frigórifico, inalterada.
Na véspera, arranje bem as pernas, removendo excessos de pele e alguma gordura que tenham aderente.
Salgue com sal grosso,
junte o corte contra corte e deixe no frigorífico durante a noite.
Na manhã seguinte, lave bem para remover todo o sal e deixe as pernas de molho em água por 3-4 horas, para remover o excesso de sal.
Seque bem, separe as coxas da perna pela articulação, arrume num recipiente de forno fundo e cubra com gordura de pato
de modo a que toda a carne fique bem coberta pela gordura.
Leve ao forno, regulado para 80-90ºC por 4-5 horas,
após o que as pernas de pato estarão confitadas. Se quiser guardá-las, passe-as para um frasco, cubra-as com a gordura onde as confitou e esterilize o frasco. Se não, retire-as da gordura
e frite-as em lume forte, de modo a alourarem e ficarem com a pele estaladiça.
Para acompanhar escolhi grelos cozidos e as batatas que acompanham tradicionalmente o confit de canard, ou seja, as batatas salardaises, que são batatas cortadas às rodelas finas e com a casca e fritas na gordura do pato, primeiro só as rodelas, sal e pimenta,
depois com um pouco de alho porro (parte verde) em rodelas finas, salsa picada alhos esmagados.
   Grelos de nabo cozidos, ficam também muito bem com o seu travo amargo a contrabalançar os tons mais "gordos" do pato confitado.
  

Focaccia Toscana (schiacciata)

$
0
0
               Hoje, mercê da globalização gastronómica e, neste caso, das adaptações norte-americanas da cozinha italiana ao seu gosto peculiar, podemos encontrar sob o nome genérico de focaccia, quase tudo o que seja parecido com pão achatado, desde algumas que são isso mesmo, uma espécie de base de pizza, até outras que mercê de vários “recheios” são na verdade pouco menos que uma pizza!
A focaccia toscana, que lá se chama “schiacciata” e que aprendi a fazer lá, em 1979, é algo de maravilhoso a apenas vagamente parecido com essas versões modernizadas e industrializadas que todos conhecemos.
Uma focaccia toscana, em pão insosso e apenas salpicada com sal e alecrim, ou coberta de singelas rodelas de batata ou de cebola são experiências gustativa e olfactiva únicas e que apenas se podem disfrutar se nos dispusermos a esquecer as de compra e deitarmos as mãos à massa. Literalmente!

Ingredientes:

Farinha de trigo 650
Fermento de padeiro
Azeite
Sal
Alecrim fresco
Batata

Preparação:

Prepare uma massa de pão sem sal e, após a primeira fermentação,
volte a amassar mas desta vez incorporando uma quantidade generosa de azeite.
Polvilhe de farinha e deixe levedar novamente, isto é, deixe que o volume dobre de novo.

Abra a massa à mão ou com auxílio de rolo de modo a que fique com cerca de um dedo de espessura. Faça umas depressões com as pontas dos dedos e regue abundantemente de azeite.
Tape esta massa azeitada com papel vegetal de forno e vire-a de modo a que o papel fique por baixo.
Pique alecrim fresco e corte batatas às rodelas finas com casca.

Salpique toda a superfície da focaccia com sal, distribua as rodelas de batata e o alecrim,
fure toda a superfície com um garfo de modo a que não possa enfolar durante a cozedura e regue de novo com azeite.
Leve a forno muito quente, no papel vegetal e sobre a base de pedra*,
primeiro durante 10 minutos, depois reduza para 160ºC e deixe cozer a massa e as rodelas de batata durante cerca de 20-25m ou até que se apresente uniformemente alourada e as rodelas de batata cozinhadas.
Sirva quente, ou morna, ou fria no dia seguinte; uma focaccia assim é sempre uma experiência inesquecível.


Nota: * Para toda a panificação é essencial dispor de uma base credível no fundo do seu forno, já que as bases de chapa nunca conseguem armazenar o calor necessário ao arranque de cozedura do pão, seja ele qual for. Para conseguir isso há que ter o fundo do seu forno forrado por uma placa de cerâmica refractária que imite o fundo de um forno de lenha ou forno industrial. Essas placas refractárias existem mas são caríssimas, por vezes mais caras do que o próprio forno e eu optei por colocar em vez delas, tijoleira normal (não vidrada) de barro vermelho. Os resultados são magníficos e o preço irrisório.



Ginjinha de Ginjinhas do Rei

$
0
0
             O lódão bastardo está espalhado por quase todos os jardins e espaços públicos citadinos e, quando chega o Outono, começa a perder a folha para passar o Inverno e deixa ver os seus numerosos frutos esféricos que foram verdes, agora são castanhos
e vão atapetando o chão ao sabor de chuvas e ventanias. Chamam-se “ginjinhas do rei” e, antigamente, não havia miúdo que não as conhecesse e roesse a sua casca castanha com uma doçura de fruto seco, algo entre o tamarindo e a alfarroba!
Com as ginjinhas do rei pode fazer-se, além de roê-las, um delicioso licor que ombreia com os licores de castanha ou de alfarroba, na minha opinião de fã de ginjinhas do rei, é até bem melhor!
De feitura muito simples, é agora o tempo de fazer esta “ginjinha” tão especial: a ginjinha de ginjinha do rei!

Ingredientes:

Ginjinhas do rei
Álcool alimentar (ou vodka)
Água
Açúcar

Preparação:

Colha ginjinhas do rei, lave-as para retirar poeiras citadinas que possam ter aderentes à casca
e seque-as. Coloque-as num frasco e cubra-as com álcool alimentar a 50ºv.
Este álcool faz-se misturando 50ml de água a 50ml de álcool a 99ºv., ou 40ml de água por cada 50ml de álcool a 90ºv. Note bem que o álcool alimentar NÃO É o álcool sanitário que se vende para efeitos de desinfecção da pele, ferimentos, combustível, etc. e que é desnaturado com uma substância que, além de ter um sabor horrível é tóxica. O álcool alimentar só se vende em farmácias e é estupidamente caro. Na sua falta, use vodka ou aguardente de cana com a maior graduação que encontrar, que será entre 37 e 40ºv.
Tape o recipiente e deixe a macerar por um mês, agitando de vez em quando.
Ao fim de um mês o álcool tomou uma bela cor de âmbar e está pronto para seguir com o licor.
Filtre de modo a obter um líquido límpido
e adicione um xarope de açúcar a 105ºC, ou ponto de cabelo*, depois de frio, o mesmo volume que o álcool apurado
se estiver a usar álcool a 50ºv. ou 80% do volume de álcool se estiver a usar vodka.

Nota: * O ponto de cabelo, ou ponto de 105ºC obtém-se levando ao lume 250g de açúcar em 1,2dl de água. Assim que ferver está pronto.


Manteiga de Azeite

$
0
0
                A ideia nasceu de uma “graça” publicitária de uma marca de margarinas, aliás cremes vegetais: ensinar a fazer um creme vegetal em casa.
A receita até nem era grande coisa, algo que ficava entre um creme de barrar e uma maionese, mas serviu para dar o mote e o processo básico, depois foi comprar ingredientes, fazer três ou quatro ensaios para acertar quantidades e, principalmente, definir o que se queria fazer.
Apesar de eu gostar de fazer em casa coisas que nos habituámos a comprar feitas, não chego ao ponto de gastar tempo e paciência a tentar emular a Becel, a Flora ou a Planta.
Mas azeite, o meu adorado azeite, é outra coisa; se é verdade que muitas vezes o uso simplesmente no pão fresco ou nas torradas, à moda andaluza, também é verdade que seria muito bom ter um creme, uma “manteiga”, em que a gordura fosse o bem-amado azeite e em vez de ter de se molhar, se pudesse barrar.
Foi desta ideia que nasceu a manteiga de azeite: substituir a parte gorda da manteiga por azeite e manter a parte láctea para lhe dar o “tempero” que só a manteiga tem. Experimentou-se, fez-se, o resultado superou as expectativas e hoje é a minha “manteiga” saudável de todos os pequenos-almoços. Assim:

Ingredientes:

200g de Azeite virgem
200g de óleo de coco
Fracção láctea de 250g de manteiga com sal
40g de água

Preparação:

Derreta 250g de manteiga sem deixar nunca ferver, no forno baixo ou em banho-maria.
Irá formar-se à superfície cerca de 4/5 de gordura límpida amarela, a manteiga clarificada ou ghee,
e no fundo 1/5 de líquido leitoso. Este líquido é o responsável pelos atributos organolépticos da manteiga, já que a parte gorda, o ghee, é virtualmente igual qualquer que seja a manteiga.
É portanto esta parte leitosa que nos interessa e vamos retirar cuidadosamente a parte gorda, que guardamos num frasco e que será uma excelente gordura para cozinhar sem queimar. Reserve a fracção láctea.

Derreta em banho-maria o óleo de coco, que é sólido à temperatura ambiente e vaze-o para uma tigela.
Misture o azeite, que deve ser de muito boa qualidade e baixa acidez.
Ponha então a fracção láctea de manteiga, que será responsável pelo sal e sabor amanteigado do seu creme, mexa com as varas e coloque no frigorífico a arrefecer ou introduza a tigela dentro de outra maior com água gelada e pedras de gelo.
Com o frio, a mistura que era translúcida ganha uma cor uniforme e opaca, cada vez mais clara e amarelada.
Junte a água bem gelada e mexa. Vá alternando períodos de alguns minutos de arrefecimento seguidos de alguns segundos a bater energicamente com as varas, até que ganha uma consistência de creme firme
e pode ser passado para uma caixa ou outro recipiente onde ficará guardada no frio.
  

Esparregado de Cenoura

$
0
0
              Os esparregados são vegetais cozinhados, mais ou menos desfeitos e acidulados, que constituem excelentes acompanhamentos.
Tradicionalmente verdes, feitos a partir de folhas diversas, espinafre, nabiça, beldroegas, urtigas, couve, etc., podem também ser feitos a partir de vegetais de outras cores, como a abóbora, o nabo, a beterraba ou a cenoura, contribuindo, além dos deliciosos sabores e texturas menos usuais, com inesperadas notas de cor para a apresentação dos nossos pratos.
Este esparregado de cenoura que hoje aqui sugiro, é fruto do aproveitamento da parte sólida de cenouras que usei para fazer sumo e que, além do prazer do sumo e da quantidade de fibras alimentares que incorpora, faz com que o esparregado fique feito num instante, já que o tempo que seria necessário à evaporação do líquido da cenoura deixa assim de ser necessário.

Ingredientes:

Cenouras
Alhos
Azeite
Ghee
Louro
Sal e pimenta
Açúcar
Vinagre ou sumo de limão
Salsa
Nozes

Preparação:

Descasque cenouras e passe-as na máquina de fazer sumos.

No depósito do desperdício ficará uma massa quase seca de fibra de cenoura. Reserve-a.

Leve ao lume brando, azeite e ghee em partes iguais (ou só azeite, ou só ghee, conforme queira o sabor final do esparregado a saber ou a não saber a azeite) e cozinhe nesta gordura, sem deixar fritar, os alhos esmagados, o louro e a pimenta.
Junte a fibra de cenoura, um pouco de açúcar e envolva, provavelmente irá ter de juntar alguma água (depende da eficácia da sua máquina de sumos) e cozinhe a cenoura, mexendo, até estar cozida a seu gosto.
Junte salsa picada já perto do fim
e acidule com vinagre ou sumo de limão, antes de servir salpicado com nozes picadas grosseiramente.
como se fosse qualquer outro esparregado.

Pastéis de Nata - A Ressurreição!

$
0
0
               A ressurreição, ou seja, dar vida ao que já esteve morto, é geralmente coisa tida por impossível e, por isso mesmo, ligada às coisas da fé que, como é sabido, move montanhas e tudo pode.
Esta introdução com laivos teológicos veio a propósito de uma das mais infelizes ocorrências ligadas à curta mas gloriosa vida desse ex-librisda pastelaria portuguesa que é o pastel de nata. Desde os magníficos pastéis de nata artesanais, com pedigree e assinatura, passando pelos da anónima pastelaria de bairro e até a esses baratos de supermercado que começaram a sua vida congelados numa fábrica qualquer, todos têm “uma queixa que os percorre” quando, algumas horas passadas sobre a saída do forno, um frio de morte se vai instalando e amolecendo o maravilhoso crocante do folhado de qualquer pastel de nata. Amolece, perde o brilho e o viço, morre!

Não há ninguém a quem essa desgraça não tenha alguma vez ocorrido, para mais sendo os pastéis, quando quentes, propensos a compras de impulso, quem resiste a tentar prolongar aqueles momentos sublimes!
Inconformado com essa cruel metamorfose que sempre ocorre, e para pior, arruinando as quase sempre ingénuas expectativas do amador de pastéis de nata, tentei durante muito tempo várias técnicas mais ou menos elaboradas  que permitissem o milagre, mas sempre em vão. Algo acontecia sempre que ensombrava o resultado: ou o folhado queimava, ou a superfície abria fendas, ou…
Curiosamente, foi a partir dessas formas de alumínio
em que são vendidos os mais humildes exemplares, nos supermercados, a meia dúzia de tostões, que consegui finalmente, uma ressurreição credível e, desta vez, a fé não foi aqui precisa para nada.

Ingredientes:

Pastéis de nata

Preparação:

A recuperação do pastel de nata faz-se através da aplicação de calor, mas direccionado. Se introduzir simplesmente o pastel no forno, quando o folhado tiver sido aquecido suficientemente já o pastel está a borbulhar, definitivamente arruinado. Para isso deve conseguir que o calor se transmita, da fonte à carapaça mas sem atingir a superfície do pastel e para isso nada melhor que aproveitar a condutibilidade dos metais, usando essas formas descartáveis de alumínio em que são vendidos os mais humildes pastéis de nata.
Guarde esses invólucros pois vai precisar de dois ou três por cada pastel a recuperar.
Ponha o pastel de nata “morto” dentro de uma destas formas e esta dentro de uma segunda,
que se destina a evitar que o fundo se vá queimar. Tape este conjunto com uma terceira forma invertida,
que se destina a não deixar secar a superfície (também pode usar uma tampa de papel de alumínio)
e leve a uma chapa muito quente por cerca de dez minutos,
ao fim dos quais o seu pastel parece ter acabado de sair do forno que, tempos antes, o fez.


Burek folhado

$
0
0
                Originário da Turquia, o Burek encontra-se disseminado pelos países da ex-Jugoslávia, Polónia, Hungria, etc., assumindo as formas mais diversas, desde o doce ao salgado, carne, vegetais, queijos e peixes, de modo a que se tornou uma designação genérica, a exemplo de tantos outras preparações de que se acabou por reter a essência do processo, como se passou com o carpaccio, as nossas alheiras ou a designação “à Brás”, ou strudel, que por acaso é outra das designações de alguns burek.
Dentre as milhentas receitas disponíveis de burek, sobressai o facto de ser uma empada/pastel em que o recheio é enrolado em massa muito fina, tipo do strudel ou filo e depois acondicionado em espiral antes de ser cozido no forno.
Este burek que aqui deixo, é um clássico presente em todo o lado na Croácia, frio ou quente e feito à base de fetta, requeijão e iogurte. Decidi acrescentar-lhe uma dose generosa de espinafres, cuja ligação com o requeijão é para mim um mustde compatibilidade de sabores. A envolvente foi feita usando massa folhada virgem de três voltas e meia, bem esticada no fim, o que torna as folhas comparáveis em espessura à da filo e o resultado foi excelente.

Ingredientes:

1 Requeijão
1 Iogurte grego
125g de Fetta
2+1 Ovos
1 molho de espinafres
350g de massa folhada* (virgem**)
Sal e pimenta

Preparação:

Junte numa tigela o requeijão, o iogurte grego (ou dois iogurtes normais, espremidos até terem o volume de um), o queijo Fetta esfarelado grosso, dois ovos e os espinafres depois de salteados e bem espremidos.
Junte pimenta e sal, tendo em atenção o que já lá está no queijo, e misture estes ingredientes de modo grosseiro, de modo a deixar alguma individualidade entre os componentes.
Estenda massa folhada* virgem** até ficar bem fina, mas sem dobrar para que resulte bem folhada, corte em rectângulos alongados e distribua o recheio junto a um dos lados maiores.
Enrole de modo a ficar um rolo alongado
e vá dispondo em espiral
numa forma de tarte.
Pincele com gema de ovo
e leve a forno muito quente, primeiro com o calor por baixo para arrancar com o crescimento do folhado, depois a 160º com a forma a meio forno durante cerca de meia hora, tapando com papel de alumínio se necessário para não queimar.

Sirva quente ou frio, simples ou acompanhado de uma salada.


Notas: * Se quiser experimentar o Burek como ele é tradicionalmente, use 7 ou 8 folhas de massa filo em vez da massa folhada.
** Massa folhada “virgem” é a massa de “3 voltas e meia”, feita com 3 dobragens triplas e uma última dupla (em livro). É a massa folhada em que as folhas ficam mais separadas e se não a fizer em casa, deverá comprar aquelas massas folhadas que se vendem em rectângulos espessos, que são geralmente massa “virgem”.

Esparregado (texturado) de Brócolos

$
0
0
                É um dos mais preciosos esparregados na já grande lista que ao longo dos anos aqui tenho deixado e simultaneamente, de uma simplicidade de execução que o transforma num acompanhamento requintado e original, pronto num instante, assim haja uma cabeça de brócolos no frigorífico.

Ingredientes:

Brócolos
Alhos
Azeite
Louro
Sal e pimenta
Vinagre ou sumo de limão

Preparação:

Com o auxílio de uma faca afiada, “descasque” a parte mais exterior da cabeça de brócolos, como se estivesse a descascar um fruto, de modo a cortar apenas as minúsculas flores verdes.
Reserve essas flores cruas e coza em água com sal todo o resto dos brócolos, talos grossos incluídos, estes após remover a película exterior se esta se apresentar coriácea.
Quando cozidos, escorra bem enquanto, no mesmo recipiente, cozinha alguns dentes de alho fatiados, uma folha de louro e pimenta moída na altura, num fundo de azeite,
sem deixar fritar ou alourar os alhos.
Junte então os brócolos cozidos, retire o louro e passe tudo com a varinha
até obter um creme liso.
Adicione por fim as flores de brócolo cruas,
envolva bem ao lume por uns segundos apenas, rectifique sal, deite um fio de azeite cru, acidifique com vinagre ou sumo de limão, mexa e está pronto a servir.


Este será o post com que me despeço de 2015.

Aos meus leitores, amigos ou visitantes de ocasião, desejo um excelente ano de 2016.

Alimado de couve coração-de-boi (reflexão sobre o bacalhau na Cozinha Popular Alentejana)

$
0
0
            Uma leitura atenta de uma resenha editada pela Câmara Municipal de Portel, sobre sopas alentejanas, confirma aquilo que há muito vinha intuindo pela experiência directa de degustação das actuais sopas (açordas) : nas cozinhas popular e de restauração, o bacalhau está a matar a infinidade de sabores simples e poderosos que ali se encontravam e que foram construídos por séculos de fome e pela inventiva com que estas populações lhe sobreviveram.
O bacalhau, hoje omnipresente nas açordas alentejanas, esteve longe de ter sido ali o "fiel amigo" que foi em outras regiões, pela simples razão de que não havia dinheiro suficiente para a sua aquisição.
O consumo de bacalhau foi assim restringido à cozinha das casas ricas, sendo usado pelo povo apenas em ocasiões festivas excepcionais e não constituiu assim um modelo que possa ser invocado como de uso habitual.
O consumo proteico nas famílias dos assalariados ou contratados rurais era muito baixo e resumia-se quase sempre a subprodutos do porco, alguma ave em dia festivo, isto para a carne, sardinhas "amarelas" e cação seco pela parte do peixe, muitas vezes substituídos pela inclusão de ovos nos pratos, basicamente constituídos por vegetais de subsistência, bolota, grão-de-bico, ervas, azeite e pão, sempre o pão.
É preciso bem mais do que recolhas etnográficas a esmo, como aquela que vos mencionei a abrir, para se perceber o que foi essa cozinha, que constitui para a esmagadora maioria da população alentejana rural uma referência directa a algo que para o citadino é uma abstracção, por vezes até enfeitada de algum romantismo tolo, mas para um alentejano rural idoso é apenas fome. E a fome nunca foi romântica, a fome é um insulto insuportável a todos os que por ela passaram!
Assim se explica a presença, hoje quase compulsiva, do bacalhau, o tal símbolo de abastança, em praticamente todas as açordas alentejanas, que à conta desse pretenso enriquecimento, perdem evidentemente na sua espantosa diversidade original.  Mesmo para quem ainda as faça no espaço privado das suas cozinhas, na altura de relatar ou demonstrar a receita para o estranho que a recolhe, impera a ancestral vergonha, a recusa de invocar antigas misérias e é aí que entra, postiço, o bacalhau!

Os "alimados" são, como o conhecido "alimado de cação", feito hoje com o peixe fresco e dantes com a variante seca, sopas engrossadas a farinha e feitas a partir de uma base de refogado de alhos em azeite, temperadas depois com coentros ou poejos frescos e cujo líquido era um qualquer caldo, proteico ou vegetal, se o houvesse, mas as mais das vezes, água. O "alimado"é o golpe final de vinagre, essencial para que a açorda se mantivesse segura durante as horas que passava na panela até ser consumida a meio do dia, nalgum campo distante. Na cozinha alentejana ancestral havia alimados de quase tudo e quando o “tudo” escasseava, alimavam-se uns alhos e coentros e com mais uma côdea estava feita a refeição.
Este alimado de couve coração-de-boi, que descobri por acaso (e saboreei, maravilhado) pela mão mestra de D. Rosa Máximo, lá na “minha” aldeia, é uma das tais sopas/prato esquecidas e  que não figura em nenhuma recolha, a caminho do olvido final da extinção. Mesmo assim já levava o inevitável bacalhau, este alimado de D. Rosa,
mas ficou a referência antiga, que foi a que usei para esta açorda espantosa, toda ela sabor telúrico e simples a invocar no palato outras épocas ainda recentes e de memória triste, na vida, mas que foram, ao mesmo tempo, o motor que desencadeou uma das mais desconcertantes e poderosas cozinhas rurais portuguesas.

Ingredientes:

Couve
Alhos
Azeite
Coentros frescos
Farinha de trigo
Ovos
Pão duro
Sal e pimenta
Água

Preparação:

Estufe couve coração de boi,
cortada em juliana, num fundo de azeite onde estalou alguns dentes de alho.
Junte coentros picados grosseiramente,
depois um pouco de farinha que se destina a dar corpo à sopa,
mexa bem para que não haja qualquer grumo quando adicionar água. Tempere, junte um golpe de vinagre de vinho, deixe ferver até a couve estar a seu gosto e a farinha cozida
e sirva sobre fatias de pão alentejano duro, acompanhada de ovos escalfados
de modo a que a gema esteja cremosa.

Viewing all 259 articles
Browse latest View live