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Bacalhau à Vences

           Rostos alegres e sorridentes que pareciam caminhar para a felicidade.
- Com que então vêem ao bacalhau do sr. Vences?
-É verdade. Fomos convidadas por ele e não podíamos faltar.
Foram chegando mais homens e damas e soou a hora de jantar.
Veio uma sopa de espinafres com grão, que não podia estar melhor! Uns pastelitos quaesquer, codornizes na fatia, no que o Josué era exímio e… a seguir o bacalhau á Vences.
Todos comeram e repetiram, apesar de já terem enchido o papo com as codornizes e os antecedentes.
Então é que foi aclamar o Vences! Já não eram só as damas. Eram os próprios homens. O Visconde de Riba Tâmega até lhe fez uma ode e o Sebastião apresentou-lhe a Chica dos Camarões.
Comprehendi, pois, a popularidade de Vences entre as damas!
É porque o bacalhau á sua moda é uma coisa unica, ideal!”
É com este texto saboroso, relato de uma cena provavelmente passada em 1919 e retirado do seu livro Memórias e Receitas Culinárias dos Makavenkos, que Francisco de Almeida Grandela nos apresenta um bacalhau que, como tantos outros, não figura nas famosas “1001 Receitas de Bacalhau”, o que aliás não admira pois far-se-iam com facilidade dois destes livros e sobrariam ainda receitas de bacalhau.
Mas o tema que o Amândio ditou para mim e para a Ana nesta 151ª Trilogia foi “1002º bacalhau”, certamente figura de estilo para todos os bacalhaus que não couberam nos mil e um primeiros e foram assim esquecidos.
De Vences, sócio do Clube dos Makavenkos, mais nada se soube além do relatado por Grandela e o mais certo é que o seu bacalhau não tenha sido mais comido depois destes dias gloriosos e loucos do princípio do sec.XX.
 Renascido hoje aqui, com o prazer da recriação de algo perdido há quase um século, posso apenas fazer minhas as palavras de Grandela e dizer:
- O bacalhau à Vences é uma coisa única, ideal!”

Ingredientes:

Bacalhau alto, demolhado
Ovos
Farinha
Azeite
Cebola
Puré de batata
Azeitonas

Preparação:

Separe as lascas do lombo, em cru,
e corte-as em tiras com aproximadamente 4cm por 2cm. Reserve.
Separe gemas e claras e bata estas em castelo firme e, sempre batendo, vá juntando farinha (cerca de uma colher de sopa rasa por cada clara) de modo a obter um polme fofo.

Passe cada lasca por estas claras e frite-as
até ficarem louras como pataniscas.
Escorra bem, passe-as então por azeite no qual previamente refogou cebola sem a deixar chegar a fritar e vá dispondo as lascas no centro de uma assadeira ou outro recipiente de ir ao forno,
parcialmente acamadas umas sobre as outras, ao alto. Rodeie as lascas de bacalhau com puré de batata
feito com leite, manteiga, sal e pimenta e leve ao forno quente a  alourar o puré. Retire do forno, decore o puré com azeitonas verdes
e no momento de servir regue o bacalhau com as gemas batidas até estarem cremosas.
Temperei as gemas com sal fino e pimenta e não me arrependi.

Robalo Grelhado com Molho de Queijo Fresco



                 Há poucos peixes que possam rivalizar com um robalo acabado de pescar, ou melhor ainda uma vária, sua prima frequente na costa alentejana e que, grelhados, são uma verdadeira delícia, mesmo estando eu já a ver os narizinhos empinados e torcidos de certos gourmets que de há uns tempos passaram a achar isso do peixe no carvão, coisa vulgar e suburbana e seguramente indigna do seu refinado gosto. Paciência, mais fica: eu adoro peixe grelhado no carvão ou na chapa e para alguns peixes como o robalo, não conheço maneira de melhor sentir todo o seu sabor e textura delicadíssima.
Quanto à origem dos robalos que chegam à minha cozinha, são maioritariamente de aquacultura e só ocasionalmente pescados na costa, isto por razões económicas que, pelo menos para mim, são importantes. Felizmente a técnica de produção destes peixes tem evoluído muito desde os pobres exemplares que apareceram há cerca de vinte anos e hoje são uma alternativa que, não tendo a exuberância de preço e sabor a mar de uma vária de Melides, desempenha muito bem a sua missão de proporcionar uma refeição excelente.
Sendo “robalo” o tema condutor desta 152ª Trilogiacom a Ana e o Amândio, fizeram-se grelhados na chapa uns exemplares que acusaram frescos uns saudáveis 600 gramas, a torná-los assim o necessário e suficiente para dois ficarem satisfeitos.
Optou-se por um grelhado rápido em chapa bem quente e com o peixe fechado de modo a conservar humidades e sabores que em peixe deste tamanho se perderiam inevitavelmente com as tão em moda práticas do hoje universal (e esse sim, bem suburbano) “escalado”, a melhor maneira de destruir o que um peixe tem de melhor.
A apetecer-me um molho daqueles que puxa o sabor do peixe e faz “boca” para um branco frutado, fresco e leve mas sabendo bem os problemas que qualquer desses molhos levanta quanto a gorduras e calorias, abalancei-me a criar um molho de baixas calorias com sabor e textura adequadas a um grande molho e a um robalo grelhado.
Em dia de inspiração culinária mas fraco de inspiração para nomeá-lo, chamei-lhe provisoriamente Molho de Queijo Fresco, o que é uma injustiça gritante para designar este molho sumptuoso que, descendente directo do molho holandês, tem dele menos de metade da gordura e logo, das calorias..

Ingredientes:

Robalos
Sal

Molho-

2 gemas de ovo
1 casca de ovo  de vinho branco
½ casca de ovo de sumo de limão
80g de creme de queijo fresco processado, light
Sal, pimenta e salsa picada

Preparação:

Amanhe os robalos tendo o cuidado de retirar totalmente o baço que, neste peixe, se esconde bem atrás da bexiga natatória, junto à espinha. Deixe a escama se for grelhar no carvão e escame se for grelhar na chapa. Salgue através da abertura ventral.

Prepare um lume de carvão forte, bem aceso e com a grelha próxima das brasas ou aqueça bem a chapa.
O molho de queijo fresco começa com um sabaião feito com as gemas e o vinho branco,
bem batidas com varas até estarem fofas e espumosas,
passando então para banho-maria (ou directamente sobre lume baixo se estiver à vontade na preparação de “molho holandês”), sempre a bater até o sabaião ganhar a consistência de um creme.

Juntar então o sumo de limão,  o creme de queijo fresco*
e a salsa picada,
isto já fora do banho-maria, deixe arrefecer no frigorífico e está pronto para servir.
Grelhe os robalos dos dois lados, cerca de cinco minutos de cada lado, voltando-o apenas uma vez.
Retire a pele, que sai inteira, no caso de ter usado o carvão e regue o peixe e acompanhamentos com o molho de queijo fresco.


Nota: * Usei um creme processado a partir de queijo fresco magro ( o Linessa, marca do Lidl, 5% m.g.).
Estes cremes apresentam a vantagem de não libertarem no molho o soro de leite, liquefazendo-o, visto serem feitos com espessantes naturais (guar, xantana, carragenina de alfarroba) que não estão ao alcance do cozinheiro amador.





Frango Assado em Bagaço

               A aguardente, a que nós chamamos ardente mas outros talvez mais sábios chamam “espírito” (wine spirit) ou até “vida” (eau de vie) é, tecnicamente, o produto da destilação de qualquer fermentado alcoólico, seja o vinho de uvas, de outras frutas, de cereais, até de batatas se pode fazer aguardente.
Quanto à graduação em álcool etílico, ela pode variar entre uns modestíssimos 30ºv. que a bem dizer nem ardente é e os inacreditáveis 80ºv. de alguns vodkas que os finlandeses e russos conseguem beber sem morrer de seguida. Por cá existe uma limitação legal de 40ºv. para qualquer destilado, (contornada na Madeira por uma valorosa aguardente de cana com 60ºv.) o que é apenas mais uma tolice burocrática que, por exemplo, torna o whisky que se bebe em Portugal uma coisa triste, três graus abaixo dos seus tradicionais 43ºv.
Hoje, no entanto, a graduação não interessa nada para este prato que bebe a boa e velha aguardente bagaceira, neste caso até caseira e de graduação desconhecida, embora a boca me diga que deve andar pelos quarenta e cinco.
Esta aguardente vai hoje temperar e ser a alma de duas pernitas de frango e tema para esta 153ª Trilogiacom a Ana e o Amândio. Digo temperar pois é disso que se trata quando se usam vinhos ou aguardentes na cozinha: o álcool vai e fica o “tempero”.
O resultado é algo de muito bom.

Ingredientes:

2 pernas de frango
1dl de aguardente bagaceira
1 cebola
3 dentes de alho
Sal, pimenta, louro, colorau
Azeite
Alface
Quiabos
Cogumelos
Fettucine

Preparação:

Faça uns golpes na pele do frango e esfregue-as com os temperos e um fio de azeite.
Deixe tomar sabores e leve então à chapa bem quente para tostar dos dois lados rapidamente.
Transfira para uma assadeira sobre uma cama de cebola e alho, regue com a aguardente e mais um fio de azeite
e leve a forno médio por cerca de uma hora, durante a qual todo o álcool se evapora e fica a parte aquosa a misturar-se com sucos, gorduras, temperos e vegetais, tudo a dar um sabor único a estas pernas de frango.
Acompanhei com cogumelos, fettucine, quiabos salteados e alface.
  

Risoto de Espinhas

                Já aqui vos falei por diversas vezes da importância das partes mais grosseiras e geralmente desprezadas de um peixe, peles, espinhas, cartilagens e barbatanas para a obtenção de portentosos caldos, a serem usados assim mesmo, como nas canjas, ou a servirem de alma e ponto de partida para inúmeros pratos e insubstituíveis por essas tristes versões industrializadas que comerciantes e até chefes da moda, a seu soldo, nos tentam impingir todos os dias.
As barbatanas que são normalmente decepadas sem cerimónia no momento em que o bacalhau é seccionado e imediatamente tratadas como lixo, fornecem um caldo intenso e aromático, precioso para cozinhar e é uma das razões porque eu compro sempre bacalhaus inteiros e me dou ao trabalho de dividi-lo em casa.
Foi com as barbatanas dos bacalhaus de mais de um ano, talvez até de dois,
que fiz este risoto de bacalhau a que chamei de espinhas por pura provocação e que ficou uma verdadeira delícia.

Ingredientes:

Barbatanas de bacalhau demolhadas
Postas de bacalhau demolhadas
Azeite
Cebola
Tomate
Vinho branco
Arroz Redondo (ou outro de bago curto e gomoso)
Salsa picada
Sal e pimenta

Preparação:

Ferva demoradamente as barbatanas, escalde com elas as postas de bacalhau, brevemente, retire espinhas e pele, reserve o bacalhau lascado e volte a pôr espinhas e peles a fervinhar com as barbatanas. Este caldo, depois de coado no chinês, será o líquido usado para a confecção do risoto, feito do modo usual, mexendo sempre,
juntando o caldo sempre aos poucos, salsa picada lá mais para o fim
e, claro, nada de queijos adicionados no fim, a cremosidade de um risoto consegue-se pelo arroz, não pelo queijo que apenas se justifica quando se quiser o seu sabor, o que, evidentemente, não se aplica a um risoto de bacalhau.

Quando o arroz estiver cozido, adicione o bacalhau reservado,
envolva já fora do lume e sirva sem demora.

Arte de Feijoar

                  Quando o Amândio nos indicou “ Arte de feijoar” como tema para esta 154ª Trilogia, tive de decidir sobre a sua intenção ao criar este neologismo verbal, ou seja, entre algo sobre o fruto feijoa, coisa exótica que cresce nos trópicos e que eu nunca vi, e algo que tivesse a ver com os bons e velhos feijões de que tanto gosto. Não sei o que a Ana nos vai apresentar mas por mim, naturalmente, escolhi o feijão e, já que de “arte” se tratava, da magna questão da sua cozedura, caminho essencial para a execução de qualquer receita em que eles entrem, desde uns pastéis de feijão de Torres Vedras até uma bela feijoada transmontana, passando pelas deliciosas sopas do nosso contentamento.
A arte de cozer feijão é bem daquelas que se pode considerar talvez até mais do que em vias de extinção, já que mais apropriado seria considerá-la defunta e virtualmente extinta, com os “altos comandos” (conjunto dos chefs) da nossa cozinha rendidos às amenidades de latas e frascos, sendo que um ou outro lá menciona a cozedura em panela de pressão e nada mais; asneira sobre asneira que, como é sabido da matemática, dá apenas “um”: uma asneira pegada!
O uso de feijão e outras leguminosas em conserva deve ser sempre uma excepção, um recurso de emergência face à possibilidade do seu consumo a partir da semente crua. Os frascos de feijão contêm antioxidantes e estabilizadores químicos para proteger o feijão da acção da luz (E385, Etilenodiaminatetracetato de cálcio dissódico, EDTA Ca Na2); já as latas não contêm aditivos adicionados mas não se livram do controverso e potencialmente perigoso bisfenol que passa para os alimentos a partir de uma camada de plástico que recobre o interior da maioria das latas. Resta-nos pois a cozedura a partir da semente seca, devendo aqui a escolha ser entre o uso da panela de pressão e a cozedura em panela normal.
Pessoalmente, a minha escolha vai direitinha para a cozedura em panela normal, única maneira em que o processo pode ser controlado e em que os feijões não rebentam. Numa cozedura à pressão, admissível apenas quando o feijão se destine a puré, além de não se saber exactamente em que ponto está a cozedura, o que varia imenso de feijão para feijão e até dentro da mesma variedade com uma infinidade de factores que vão desde a dureza da água ao tempo que o feijão leva depois de colhido, provoca-se uma diminuição brusca da pressão no fim da cozedura, sendo que o interior de cada feijão, na altura a uma temperatura e pressão maiores que o caldo, vai rebentar ficando o caldo grosso e os feijões rebentados e empapados de caldo.
Um feijão bem cozido deve estar totalmente cremoso por dentro mas com a película intacta e o caldo em que cozeu ser límpido e não cheio de “pó” de feijão rebentado. Assim:

Ingredientes:

Feijão Catarino seco
Entrecosto fumado
Sal e pimenta
Couve portuguesa ou repolho “coração”

Preparação:

À excepção do feijão frade, que não precisa, todos ou outros têm de ser demolhados até terem recuperado toda a água perdida durante a secagem.
Isto consegue-se mantendo-o coberto de água por um período entre oito e dezasseis horas, ou até ter duplicado os seus volume e peso apresentando a película esticada, sem qualquer ruga. Neste caso, em que ia temperar o feijão catarino com carne fumada, demolhei-a também juntamente com o feijão.

Leve então o feijão ao lume, a partir de frio, bem coberto de água e temperado com sal, pimenta, louro e alho com casca, bem como com a carne fumada ou salgada, se a estiver a usar. Quando levantar fervura, baixe o lume para mínimo, tape e deixe por cerca de quarenta minutos. Vá então observando e provando até sentir que os feijões estão perfeitamente cozidos. Como neste sistema os feijões não se rebentam ou desfazem

terá mesmo de provar pois apenas pelo seu aspecto não chega a nenhuma conclusão.
Após cozedura, retirei alguns feijões e caldo e cozi ainda couve repolho coração que, servida juntamente com o feijão e o entrecosto, fez refeição inesquecível de simplicidade e encanto.

Untada com um fio de azeite e uns borrifos de vinagre de vinho, soube pela vida este reconfortante exemplo do que pode ser a arte de feijoar.





Borrego em Moscatel

                    Seja em vinhos normais, seja nos generosos, ditos “fortificados”, seja ainda em deliciosos espumantes ou até nas passas de entrada de ano e do bolo-rei, os aroma e sabor inconfundíveis das uvas de casta moscatel são para mim uma perdição, aquilo a que eu poderia chamar a quintessência das uvas.
Para esta 155ª Trilogia em que eu, a Ana e o Amândio andaremos à volta do tema  “moscatel” e suspeito que o Amândio irá oferecer-nos algo relacionado com os magníficos moscatéis do Douro ou de Setúbal, já que vinhos são o seu “terroir” de eleição, ficarei com a grata incumbência de vos apresentar estas magníficas uvas, não como sobremesa, não como vinho, não sequer como conduto para pão como se faz no Alentejo, mas sim como acompanhamento sofisticado para carnes assadas, aqui um peito de borrego alentejano. Sendo das uvas de colheita mais tardia, este foi uso que dei às uvas que colhi na única vinha de moscatel dentro da cidade de Lisboa, mais precisamente na Tapada da Ajuda, nas vinhas do Instituto Superior de Agronomia,
onde voltei com gosto quase quarenta anos depois, desta vez para vindimar.

Ingredientes:

Peito de borrego
Vinho moscatel de Setúbal
Alhos, louro, sal, pimenta, paprika
Cenouras, cogumelos, bróculos
Uvas moscatel

Preparação:

Parta o peito em pedaços e tempere-o, usando para ligar os diversos temperos um ou dois cálices de vinho moscatel de Setúbal ou Favaios.
Deixe marinar por algumas horas e leve a forno muito quente por cerca de quinze minutos, virando os pedaços de modo a que fiquem tostados por fora.
Junte então as cenouras em troços, uma mistura em partes iguais de moscatel e água, um golpe de vinagre, tape com alumínio
e leve de novo ao forno médio por mais uma hora. Salteie os bróculos e os cogumelos, brevemente, em molho que retirou à carne e arrume-os na assadeira. Trate por fim da uvas, que devem ser salteadas em lume muito forte e em gordura do próprio assado.
As uvas não aguentam ser cozinhadas prolongadamente e estão prontas assim que a pele começa a estalar. Junte-as ao assado e leve-o ao forno de novo,
bem quente e por poucos minutos, apenas o suficiente para tostar um pouco.
Para a sinfonia ficar completa, acompanhei-o com um rosé magnífico, o Moscatel Roxo 2011, Colecção Privada de Domingos Soares Franco, da José Maria da Fonseca, de que vos falei aqui.



Bola de Miranda do Douro


         Considerar como cozinha tradicional de determinada região ou povo aquela oriunda das cozinhas ricas de conventos ou dos solares senhoriais é um dos erros mais grosseiros de que enfermam as histórias culinárias europeias em geral e a história culinária portuguesa em particular, contrastando em absoluto com as recolhas que fazemos nas cozinhas indígenas ou de terceiro mundo, essas sim, espelho daquilo que essa comunidade realmente come. Já por cá, é abrir qualquer livro de culinária ou doçaria ditas tradicionais, regionais ou populares e o que foi recolhido é, na sua esmagadora maioria, um desfilar de cascatas de ovos, amêndoas e açúcar, quantidades prodigiosas de carnes, peixes e fumeiros riquíssimos, esquecendo toda a culinária do país real, pobre e rural que teria muita sorte se conseguisse comer uma qualquer proteína animal ao Domingo, um ovo, uma rodela de salpicão ou uma sardinha salgada e que fazia, isso sim, milagres culinários com um pouco de unto, umas ervas, azeite e pão.
Para esta 156ª Trilogia em que eu, a Anae o Amândio iremos tratar o tema "Trás-os-Montes", decidi esquecer os miríficos pratos de uma abastança  desenfreada com que por vezes nos apresentam esta tão querida e tão distante província, pobre entre as pobres e cujo povo granítico pouco ou nada tem a ver com Os Pastéis de Santa Clara ou os Papos-de-Anjo de Mirandela ou sequer com postas mirandesas ou as bolas a escorrer carnes que hoje enxameiam em feiras e certames para atrair forasteiros a estas paragens mas que os transmontanos nunca fizeram ou comeram. Com papas e bolos...
A Bola de Miranda que hoje aqui trago é, pelo contrário, o retrato fiel de uma cozinha paupérrima, mesmo miserável nos anos de fome, mas que nem assim renunciava a criar com o que havia, muito do quase nada como aqui, a fazer uma festa com um pouco de massa de pão "roubado"à cozedura familiar, açúcar e canela e com pouco mais se compunha a alegria desta bola.
A bola de Miranda, depois de anos esquecida, foi ressuscitada por esforços municipais e hoje é até objecto de certificação apesar das cedências algo apressadas e pouco pensadas feitas a uma lógica de industrialização¹ de todo em todo desnecessária.
Por mim, fi-la como dantes se fazia, com massa de pão, manteiga e azeite e não me arrependi. Assim como assim, só ia fazer uma bola e não tinha clientes à espera...

Ingredientes:

Massa de pão -
500g de farinha 65
300g de água
20g de fermento fresco
7g de sal

Bola-

750g de massa de pão
1 ovo
2 gemas
0,5dl de azeite
50g de manteiga
Farinha 65 q.b.
Açúcar e canela q.b.

Preparação:

Dissolva o sal e o fermento em água morna e misture com a farinha. Deixe em repouso por 20 minutos². Enfarinhe uma superfície de trabalho e as mãos, vaze a massa sobre ela, salpique de farinha e trabalhe-a energicamente durante alguns minutos.
Tape com um pano e deixe abrigada de correntes de ar até que tenha duplicado de volume, o que acontece em cerca de uma hora.
Está pronta a sua massa de pão.
Amoleça a manteiga sem deixar que ferva, junte ao azeite e aos ovos
e misture tudo na massa levedada com o auxílio de uma batedeira de massas até estar tudo bem incorporado. Junte então a farinha que entenda necessária para que a massa ganhe corpo suficiente para ser tendida com o rolo, mas mais mole que massa de pão.
Divida a massa em várias porções pequenas que farão as várias camadas da bola e uma porção maior destinada a forrar a forma que for usar.
Deixe que estes pedaços cresçam de novo até duplicarem o seu tamanho.
Estenda o pedaço maior da massa com o rolo e o auxílio de farinha e forre com ele uma forma previamente untada de manteiga,
tendo o cuidado de não deixar qualquer rasgão na folha de massa o que deixaria sair o açúcar durante a cozedura.
Deite no fundo uma camada generosa de açúcar e polvilhe com abundante canela.
Estenda então um dos outros pedaços de massa de modo a preencher o espaço dentro da forma forrada,
volte a aplicar açúcar e canela e assim sucessivamente até esgotar todas os pedaços de massa. Torça os rebordos desta última camada junto com o forro fazendo um cordão de massa que a fecha em volta,
acabe apenas com açúcar
e leve a forno quente (180-190ºC) durante cerca de meia hora.
Retire antes da massa estar totalmente cozida, já que a Bola de Miranda é um bolo que só ganha em ficar húmido por dentro, meio mal-cozido.

Notas:
¹ Nas actuais receitas da Bola de Miranda, mesmo as debitadas pela Câmara Municipal ou pela principal fabricante certificada, a massa é feita sem o recurso à massa de pão prévia, sendo os ingredientes amassados juntos de raiz e só havendo assim uma fermentação, com a devida poupança de tempo, precioso para um negócio que vive de bolhas de actividade em ocasiões festivas bem determinadas e raras e alguma pasmaceira no resto do tempo. Claro que, apesar de compreensível, é inadmissível o sacrifício do sabor original e, mais ainda, a usurpação de um nome que designa algo bem determinado e que vem do tempo em que o tempo e não a pressa era ingrediente presente e importante na maioria das receitas.
² Ainda relacionado com o tempo devo realçar esta questão magna do repouso inicial das massas de pão (bem como os repousos de massas em geral), pormenor quase sempre encarado nas cozinhas apressadas como preciosismo dispensável e cuja falta é também quase sempre responsável por tantos fiascos e más-vontades do cozinheiro moderno em relação às massas em geral e às de pão em particular.



Raia de Alhada

              Ao contrário do que nos vão impingindo os chefs cozinheiros mediáticos com os seus shows, concursos, caldos knorr ou eventos em supermercado suburbano, no vasto mundo virtual dos blogs gastro-culinários podem encontrar-se alguns blogs  excepcionais onde cozinhar adquire todo o seu significado no que respeita a sensibilidade, criatividade, inovação e também respeito pelos pratos que, sendo de outros tempos, permitem tudo isto. Blogs como O Avental do Gourmet, Ardeu a Padaria, O Senhor Prendado ou O Fogão do Kuka levaram não só a arte culinária que lhes está na génese como também as capacidades de partilha e pedagógica a níveis de verdadeira excelência, apenas para citar alguns que sendo de referência estão hoje já inactivos e não correndo assim o risco da suprema deselegância de deixar alguém esquecido.
Foi a partir de uma receita publicada há já sete anos num destes blogs, O Fogão do Kuka, por sua vez espelho de uma receita regional do Sotavento algarvio, que parti para uma recriação de uma forma pouco comum de confeccionar a raia, animal que apesar de ter passado por ameaças graves devido a sobrepesca, teve os stocksestabilizados e aumentados pela aplicação da legislação restritiva implementada pela Comissão Europeia.
Vamos então a esta belíssima variação sobre a raia de alhada, algo que, ao que se sabe, nunca terá sido feito por Henrique Sá Pessoa e que portanto constitui a maior (e total) variação à sua comida, hoje nesta 157ª Trilogia em que eu e a Ana tivemos, a mando do Amândio, o tema “variações sobre HSP”!

Ingredientes:

Postas de Raia
Sal e pimenta
Azeite
Alhos

Preparação:

Parta a raia separando as asas das cartilagens e vísceras do eixo do animal
e parta estas em postas segundo a linha das finas cartilagens que lhes dão forma.
Coza demoradamente as cartilagens e cabeça da raia, apenas cobertas com água temperada com sal. Retire então o peixe e, no caldo, coza por breves minutos as postas, retire-lhes a pele e reserve.
Numa tigela, misture a frio azeite, vinagre, sal, pimenta, alhos moídos e um pouco do caldo onde ferveu cartilagens e as postas.
Com varas de arame emulsione esta mistura e regue com ela as postas de raia.
Acompanhe com batatas cozidas, legumes, etc.



Açorda de Lagosta à Moda da Costa Estremenha


               Para quem ao longo destes últimos três anos se habituou a seguir esta brincadeira a que a Ana, do blog  Na Cozinha com a Anna, o Amândio, do blog Garficopo e eu próprio aqui, chamámos Trilogias e que semanalmente às Quartas-Feiras foram construindo um acervo temático de quase cinco centenas de propostas culinárias, esta aparição da 158ª Trilogia a um Domingo pode parecer estranha.
Acontece que foi exactamente a 10 de Novembro de 2010 a primeira Quarta-Feira em que se publicou uma Trilogia e que, sentindo os parceiros trilógicos que é altura de fazer um encerramento ou pelo menos uma pausa, seria perfeito fazê-lo no dia em que comemoramos o terceiro aniversário. Para este final das Trilogias, que sempre foram um espaço desafiante mas também de cumplicidades e sã amizade, escolhemos um tema particularmente adequado ao que foi esta experiência: "afectos".

Apesar de muitas outras terem depois surgido ao longo da vida, a costa dos meus afectos de infância e juventude é esta que se estende entre praias e arribas escarpadas, entre dois cabos muito belos, o da Roca, frente a Sintra e o Carvoeiro, logo a seguir a Peniche, desenhando-se nestes escassos cinquenta  quilómetros de costa muitas outras singularidades que só o conhecimento íntimo detecta e a que alma se afeiçoa. Gosto muito de Peniche, da sua costa, das praias tantas vezes envoltas em cerrados nevoeiros e ventanias desabridas, das belíssimas Berlengas ali em frente e, claro, daquele mar batido e dos seus magníficos peixes e mariscos, de onde sobressaem percebes tão bons ou até melhores que os galegos da Costa da Morte. É que estas são águas bem frias e até inóspitas para quem vem habituado a outras amenidades de temperatura e calmarias do mar mais a Sul e, se por vezes provocam semanas inteiras de "bandeira vermelha", também são a causa dos já falados percebes, das santolas e também daquela que é seguramente a nossa melhor lagosta, a lagosta apanhada de Peniche à Ericeira e que deu origem a pratos  como a Lagosta Suada à Moda de Peniche ou a Açorda de Lagosta da Ericeira, ex-libris da cozinha jagoz. É claro que lagosta, seja de Peniche, da Ericeira ou outra qualquer, não é, por motivos óbvios, comida de todos os dias no meu prato, mas hoje será condigno prato de festa aniversariante e encerramento destas Trilogias.

Ingredientes:

1 lagosta média
Camarão
Azeite
Pão de trigo, fino
Alhos
Sal e pimenta
Salsa

Preparação:

Para fazer esta açorda deve usar uma lagosta que tanto pode ser viva como morta; apenas as cozidas previamente não servem. Se usar viva deverá mergulhá-la em água a ferver com sal onde o animal morrerá em segundos, deixando depois ferver por cerca de cinco minutos. No caso de usar, como eu, uma lagosta crua mas já morta,
comece por cortar-lhe a cabeça,
vire-a, introduza uma agulha de tricot das que têm barbela pelo orifício anal
até ver a ponta sair pelo outro lado e puxe de novo de modo a que a barbela arraste consigo a tripa
que percorre o corpo da lagosta.
Coza o corpo da lagosta, a cabeça e alguns camarões em água com sal
apenas suficiente para cobri-los, durante cerca de cinco minutos para a lagosta e dois minutos para o camarão. Escorra e reserve o marisco e o caldo resultante.
Demolhe o pão neste caldo e proceda como aqui se disse para a feitura da açorda,
junte o camarão descascado e o conteúdo da cabeça da lagosta e decore com salsa, a carne da lagosta, pernas e algum coral, se houver.
Não ponha ovo.


Feijoada de Lebre com Nabos

   
            Apesar das semelhanças anatómicas com o primo coelho, a lebre é muito diferente dos pontos de vista culinário e gastronómico, a permitir devaneios bem mais interessantes que os possíveis com o seu parente mais plebeu.
São tradicionais e felizes as associações da carne algo adocicada da lebre com o travo dos nabos e o feijão e foi com estes dois ingredientes e uma bela lebre que compus o almoço, regado como merece e animado com os temperos essenciais a qualquer prato: tempo, amizade e cavaqueira.

Ingredientes:

1 Lebre
Alhos
Louro
Sal e pimenta
Vinho branco
Cebolas
Cravinhos
Pimenta da Jamaica
Pimentão doce de Talavera
Pimentão picante de Talavera
Azeite e banha de porco
Feijão branco fidalgo
Couve repolho coração
Nabos
Pão frito em azeite

Preparação:

Esfole e eviscere a lebre, aproveitando o fígado, rins e coração. Parta em pedaços grandes, lave bem em água gelada por meia hora e cubra os pedaços com sal, pimenta, alhos esmagados, louro e vinho branco.
Deixe a marinar no frio por três dias.
Refogue numa mistura de azeite e banha de porco a cebola picada, alhos, louro, pimentão doce e picante (se arranjar use o inexcedível pimentão espanhol de Talavera), pimenta preta moída no momento, cravinho e pimenta da Jamaica em grão.
Junte a lebre escorrida* ao refogado,
envolva, cubra de novo* vinho branco, tempere de sal e deixe cozer por duas a três horas, consoante a idade da lebre. A carne deverá poder soltar-se facilmente dos ossos sem no entanto se desfazer. Desosse e reserve.
Junte ao molho que a carne deixou, nabos em cubos pequenos e couve repolho (parte clara) em juliana grossa,
deixe cozer e adicione por fim a lebre desossada e feijão branco
previamente demolhado e cozido em panela aberta.
 Sirva sobre fatias de pão alentejano frito em azeite e escorrido em papel absorvente.

Nota: 
*A lebre é um animal extraordinariamente sanguíneo, com uma carne escura que é impossível sangrar por completo. Ao iniciar um prato de lebre deverá tomar uma decisão fundamental que, de acordo com o seu gosto, influirá grandemente o resultado final: aproveitar ou não essa grande quantidade de sangue que se desprenderá para a marinada com que se inicia qualquer prato de lebre. Se usar a marinada o prato ficará com um sabor intenso a uma cabidela de caça, o que poderá não ser consensual. Não querendo esta intensidade geral mas apenas o sabor a lebre, há que rejeitar o vinho sanguíneo da marinada e cozinhar a lebre marinada num novo vinho branco, que foi o que fiz neste caso, embora goste também da versão intensa.  O resultado superou as expectativas, acolitado por este excelente alentejano Herdade de São Miguel, Reserva de 2007, que mostrou em pleno a sua vocação de um belo vinho para "casar" com pratos de caça.



Ossobuco com Bolotas, à Minha Moda


                      Apesar do termo italiano “ossobuco” designar um prato típico da Lombardia feito com pernil de bovino, o certo é que, a exemplo de tantos outros, o uso consagrou ossobuco como significante da peça de carne e não do prato, ou seja, chamamos hoje “ossobuco” a uma fatia do pernil (nispo ou chambão) englobando o osso.
Além das receitas milanesas originais, existem um sem-número de outras, sendo o único factor comum o serem pratos algo demorados pois o chambão é sempre uma carne dura e enervada mas, talvez por isso mesmo, deliciosa.
Em qualquer prato de ossobuco, o tutano da cavidade do osso é ingrediente indispensável e foi aproveitando o seu sabor único que fiz este ossobuco de vitela alentejana, acompanhado por batata doce da Comporta, bolotas de azinheira e acelgas bravas que agora crescem nos campos.
Uma delícia!

Ingredientes:

Fatia alta de ossobuco
Sal, pimenta, alhos e louro
Azeite
Vinho branco
Pimentão doce
Pedaço de chouriço alentejano
Batata doce da Comporta
Bolotas de azinheira
Acelgas bravas

Preparação:

Tempere de véspera o ossobuco com pimenta, louro e alhos.
Retire louro e alhos, reserve-os e sele a carne em azeite bem quente, tendo o cuidado de retirar a pele que circunda o ossobuco de modo a que não se encaracole a carne.
Quando estiver selado, retire-o e introduza então cebola às rodelas, alhos e louro que temperaram a carne e deixe a cebola começar a estalar. Reintroduza o ossobuco, polvilhe com pimentão e junte chouriço às rodelas e vinho branco.
Tape e deixe estufar por cerca de 60-90 minutos, juntando mais vinho quando necessário para não queimar.
A bolota de azinheira é um fruto aparentado com a castanha mas menos doce e pode encontrar-se facilmente nesta altura sob estas majestosas árvores do montado;
se vive longe de azinheiras, use castanhas. Dê um golpe nas bolotas,
ferva-as por três ou quatro minutos, descasque-as e pele-as. Passe o ossobuco estufado para uma assadeira ou tabuleiro de forno e rodeie-o com as bolotas e rodelas de batata doce previamente escovadas e lavadas, de modo a conservarem a casca.
Regue com o molho do estufado e leve a forno médio por mais meia hora.
Sirva com um salteado verde, neste caso acelgas bravas com azeite e alhos
e espalhe o tutano sobre a carne antes de começar a comer.


Pimentos Vermelhos Italianos, Recheados


                  São conhecidos por “italianos” mas na verdade o seu consumo estende-se à maioria dos países da Europa, sendo até que em países como a Hungria estes pimentos doces e alongados, meio torcidos por vezes, são das variedades mais consumidas. Em Portugal têm chegado timidamente e é muitas vezes evidente que a tentação de experimentar a novidade esbarra com a ignorância sobre o modo como devem ser consumidos e até com algum receio sobre as eventuais capacidades picantes destes frutos que parecem malaguetas gigantes.

De sabor suave e doce e pouco carnudos, parecem ter sido feitos a pensar em futuros recheios e é de facto este o modo ideal de cozinhá-los: recheados com aquilo que se quiser, tendo em atenção que por serem finos o calor chega depressa a todo o recheio e permite que o próprio pimento não amoleça em demasia como tantas vezes acontece com os volumosos e carnudos pimentões a que estamos mais habituados.
Quanto ao recheio propriamente dito, como a forma do pimento me fez lembrar irresistivelmente os sacos das lulas, foi este o recheio escolhido, “lula” por fora e lula por dentro, que bons ficaram estes italianos assim convertidos em peixe na minha cozinha!

Ingredientes:

Pimentos vermelhos, italianos
Lulas
Cebola, alhos, louro,
Paprika fumada
Sal e pimenta
Azeite
Arroz carolino

Preparação:

Escalde as lulas brevemente e reserve o caldo formado. Parta-as em pedacinhos e refogue-as juntamente com a cebola e alhos picados, paprika fumada*, louro sal e pimenta.
Coza arroz no caldo das lulas, usando a proporção 2/3 de modo a que o arroz não fique totalmente cozido. Misture arroz cozido  com o refogadinho de lulas e reserve.
Abra a base dos pimentos sem seccionar por completo, retire as sementes que nestes pimentos se concentram junto ao pé deixando livre o resto do tubo
e encha-as com o recheio.
Passe um fio de azeite e leve-as a forno bem quente durante 10-12 minutos.

Sirva como entrada, petisco
ou até como refeição leve se com um acompanhamento a seu gosto.

Nota: * Se não arranjar a paprika fumada, que é por vezes difícil, junte um pouco de chouriço de fumeiro picado muito fino, para dar o toque a fumo em falta.


Escabeche de Bacalhau


                      Há refeições que nascem de formas totalmente inesperadas e até inusitadas, como esta que acabou por nascer ao pequeno-almoço de dia em que se foi até uma feira mensal, esta não é saloia porque na margem Sul da capital, mas o espírito desta feira em Azeitão é bem parecido, um ponto de miscigenação entre as culturas rurais, suburbanas e urbanas mesmo aqui ao pé de Lisboa e um sítio em que adoro passar a manhã dos Domingos em que fico por cá.
Não se sendo rural, fica-se de algum modo condenado a ser turista, um pouco desfasado dos códigos reinantes nestes mergulhos em culturas diferentes, mas claro que, mesmo ao turista, restam sempre duas opções: a do turista-mirone, saltitando embasbacado num mundo que lhe é estranho e de que apenas observa o pitoresco, ou o turista que se embrenha e vive até onde consegue chegar o espírito e as regras destes recantos codificados.
Chegar cedo e tomar o pequeno-almoço nestas feiras é um passo importante para a compreensão do lugar. Aqui, às oito horas da manhã já se comem sopas de feijão, bifanas, a imprescindível sopa Caramela, couratos assados, torradas no carvão e umas fabulosas postas de bacalhau albardado que, dentro do pão, fazem de um pequeno-almoço uma festa que não se esquece.
Dentro do meu pão, surgiu-me hoje esta inacreditável posta de bacalhau,
alta, suculenta mas totalmente desmesurada para um pequeno-almoço. Trouxe o que restou, e foi muito o que restou, compus este escabeche a pensar num outro de petingas que o Amândio aqui deixouhá dias e que me deixou água na boca.

Ingredientes:

Bacalhau albardado (posta)
Cebola
Alhos
Louro
Sal e pimenta
Azeite
Vinagre de vinho
Batatas e azeitonas

Preparação:

Refogue a cebola e alhos em azeite bom e abundante, com louro, sal e pimenta. Junte vinagre de vinho e deite tudo sobre o bacalhau.
Sirva com batatas cozidas temperados com o azeite avinagrado do escabeche e junte azeitonas.
Delícia.



Cavala Salgada à Saloia


                 As opiniões divergem sobre quais são os concelhos envolventes da cidade de Lisboa, a Norte do rio Tejo que constituem a região saloia, havendo quem a restrinja a Sintra, Oeiras e Loures, outros a fazê-la abarcar também Cascais, Amadora, Mafra até Torres Vedras e finalmente quem considere zona saloia grande parte dos férteis concelhos da Região Oeste até às Caldas da Rainha.
Seja como for o que é certo é que, através dos séculos, foi a região saloia a grande responsável pela alimentação da capital e se hoje essa importância se esbateu pelos avanços da distribuição global, a verdade é que se podem ainda encontrar traços muito fortes dessa cultura rural aqui às portas da grande cidade, mesmo em concelhos que se tornaram mais importantes como dormitórios que como hortas.
A gastronomia da região saloia tem ainda traços dessa antiga missão de criar e encaminhar para a capital as partes mais nobres de peixes e carnes, valorizando-se aqui as partes e variedades com menos valor ou apetência por parte da gente mais endinheirada da cidade. Encontram-se pratos como o sangacho de atum cozido à saloia, a maior parte da cozinha jagoz ou estas cavalas salgadas que ainda se podem encontrar às Quintas-Feiras na feira da Malveira, enganchadas neste estranho abraço salgado
e vendidas, não ao quilo como agora se faz, mas aos pares.
Cozidas e acompanhadas a preceito, comem-se aqui e também um pouco por todo o litoral a norte de Lisboa, lembram o primo rico, atum
e fazem uma refeição deliciosa por cêntimos!

Ingredientes:

Cavalas salgadas
Sal
Acompanhamentos a gosto
Azeite e vinagre

Preparação:

As cavalas saloias são vendidas evisceradas através de um golpe sui generis feito no flanco do peixe
e não na linha ventral como é hábito.
Cheias de sal grosso, recebem então uma segunda cavala encaixada dentro dela e que constitui o “par”, a unidade de venda.
Pode utilizar-se no dia da compra apenas com uns minutos de molho antes de cozer ou, muito melhor, deixá-las para um ou dois dias depois, altura em que ganham todo o seu sabor. Neste caso há que demolhá-las, duas horas por cada dia em que esteve à espera no sal, depois cozê-las juntamente com os legumes que se quiser, aqui usei cebola, batata e couve e regá-la com um bom azeite e vinagre de vinho.



Sopa Caramela


               Quando hoje vemos tão densamente povoada de gentes, vilas e cidades toda a península de Setúbal, esquecemo-nos frequentemente de que ainda no Sec.XX, até à construção da primeira ponte sobre o Tejo em Lisboa, era um território semi-despovoado onde o estado tentava fazer uma colonização interna distribuindo terra e casas a quem aqui quisesse fixar-se e mesmo assim com a maioria do trabalho à mercê de movimentos migratórios sazonais de trabalhadores rurais oriundos da Beira Litoral que eram alcunhados de “caramelos de ir e vir”. Responsáveis por grande parte da colonização de áreas importantes dos concelhos de Palmela, Moita, Pinhal Novo, Pegões, Alcochete, Montijo e Barreiro, a Região Caramela, trouxeram com eles novos hábitos alimentares e baseados em alguns dos enchidos das suas terras de origem, produtos do cultivo local e muita pobreza, criaram esta variante de “sopa da panela”, chamada Sopa Caramela, que a princípio pouco diferia das nortenhas sopas de unto mas que o tempo e novas abundâncias foram enriquecendo até se tornar numa sopa/prato monumental, uma das grandes sopas portuguesas, injustamente esquecida e que é uma experiência inolvidável.
Consegue imaginar algo que lembra irresistivelmente um cozido à portuguesa, um rancho, uma sopa da pedra, uma sopa da panela, sendo todas elas sem ser nenhuma? É a Sopa Caramela!

Ingredientes:

Feijão cozido (catarino, manteiga ou vermelho)
Chouriço de carne
Farinheira
Chouriço de sangue (ou mouro)
Carnes magras de porco (perna, entrecosto…)
Carnes gordas de porco (orelha, chispe, cabeça, entremeada…)
Cebola e alhos
Cenoura
Nabo
Batata
Couve repolho
Massa cotovelinhos

Preparação:

Demolhe e coza o feijão e reserve. Coza as carnes em água com sal, uma cebola e alguns dentes de alho com casca.
Retire as carnes quando cozidas, coza no caldo a farinheira e o chouriço de sangue, reserve carnes e enchidos
e ponha a cozer no caldo por esta ordem, cenouras, nabo, batata, couve repolho (usei coração, a minha preferida),
por fim a massa e o feijão.
Desfie grosso as carnes, corte os enchidos
e sirva a sopa com as carnes e enchidos por cima,
como se usa na Região Caramela, ou misturadas na própria sopa, como eu mais gosto.
  

Cabrito Estonado como se faz em Oleiros (e fim do Outras Comidas)

             Há tempos e espaços apropriados para se começar, existir e também acabar e o Outras Comidas não é excepção. Durante cinco anos foram aqui ficando conversas à volta das comidas que constituem a minha cozinha e o modo pessoal como a encaro e pratico todos os dias. 
Hoje, aquilo que sou como cozinheiro amador e as minhas opiniões quase nunca consonantes com a mainstream politicamente correcta das cozinhas dos facilitismos, das pressas, dos espectáculos mediáticos, e da onda avassaladora de cozinheiros da moda, ficou aqui e aqui ficará online. Continuar teria de ser à custa, já não daquilo que sou mas daquilo que teria de inventar para alimentar o Outras Comidas e isso é exactamente o que não quero fazer, o meu gosto vai inteiro para a cozinha sólida e consolidada, a minha, mesmo quando cria e inova, abominando as cozinhas que vivem das surpresas, das receitas a fingir que seguir uma receita, um manual de instruções de um prato, é o mesmo que cozinhar, das degustações e dos efeitos chocantes de rei-vai-nu.
Se ao longo destes anos consegui motivar alguém, e gosto de pensar que sim, para os prazeres gastronómicos que também existem a montante dos momentos à mesa, na feitura da comida, então dou por bem empregadas estas muitas horas  que dediquei ao Outras Comidas
Neste percurso de cinco anos e quase dois milhões de visitas, em que os meus leitores, os fiéis e os acidentais que aqui foram chegando ao sabor das ondas da navegação virtual, foram essenciais para este trabalho em que sempre tentei, mais do que ter alguém a seguir as minhas receitas, conseguir que em alguém nascesse os destemor e espírito de aventura e descoberta necessários para o despertar de uma cozinha própria.

O Outras Comidas começou com uma sobremesa galega notável, a Tarta deYema e vai finalizar com um prato português notável entre os notáveis e mesmo assim quase desconhecido, o Cabrito Estonado à moda de Oleiros. Para esse desconhecimento contribui decisivamente o facto de ser um prato muito difícil de repetir, pois a sua essência é algo que viola a lei portuguesa que regula o comércio de animais mortos, em talho: é proibida a venda de animais de pêlo com a sua pele, excepto o porco e peças de caça e cabrito estonado é isso mesmo, assado com pele como os leitões e só pode ser vendido nos talhos do concelho de Oleiros. Mas é talvez o meu prato preferido entre todos os pratos da cozinha portuguesa e se o Outras Comidas foram cerca de sete centenas de pratos ou preparações que eu mesmo fiz, encerrará com um feito pela maestria de D. Maria Afonso*,
que assim o fez e eu comi, em Oleiros.

Ingredientes:

1 Cabrito de leite, vivo ou morto mas com a pele intacta
Alhos
Banha de porco
Pimenta preta
Sal

Preparação:

Mate com um golpe na jugular o cabrito, que deve ser rigorosamente de leite. Isto quer dizer que terá no máximo quarenta dias de vida e apresentará, vivo, um peso não superior a sete quilos. Deixe-o pendurado pelas pernas durante três a quatro horas de modo a que escorra bem o sangue e passe então à operação delicada de remoção de todo o pêlo, que se faz mergulhando-o rapidamente em água bem quente mas não a ferver e esfregando-o então com uma serapilheira grossa. Passe-o depois com a chama de um maçarico ou ramos a arder como se faz com os porcos, de modo a chamuscar qualquer pêlo que tenha restado.
Assim pronto o cabrito (que pode comprar preparado num talho de Oleiros), esfregue-o bem por dentro e por fora com uma pasta constituída por banha de porco, pimenta preta moída, alhos esmagados e sal. Deixe assim por duas ou três horas antes de levar a forno de lenha muito quente, assente em paus de loureiro ou, na falta, numa grelha que impeça que toque na assadeira que, por baixo, irá apenas recolher o molho que vai pingado à medida que progride o assado.
Durante o assado, vai-se constipando o bicho com borrifos de vinho branco gelado de modo a tornar a pele estaladiça, pedra de toque do cabrito estonado.
Acompanha com batatas assadas no forno, esparregado de nabiças um arroz de cabidela dos miúdos do cabrito e rodelas de laranja.
Se o for comer a Oleiros, não deixe de experimentar o vinho da casta Calum, um vinho branco cor de âmbar,
de sabor estranho e surpreendente, que apenas existe aqui sendo cultivado ao longo da Ribeira da Sertã e que não é engarrafado ou vendido fora de Oleiros.

E por aqui me fico, até já.

Nota:
Outros motivos condicionaram também esta decisão: os sessenta anos quase à porta, uma vida de mais de três décadas de excesso de peso e problemas de mobilidade, motivaram também uma mudança que teve de ser radical na minha dieta, uma reviravolta que não se compadece com muitos dos petiscos tão calóricos que fizeram o Outras Comidas mas que me permitiu passar, sem recurso a outras ajudas ou "milagres", de quase centena e meia de quilos para uns saudáveis noventa.

A cozinha que criei para este processo, os petiscos que passaram a fazer parte deste meu novo dia-a-dia bem mais leve, serão o tema do Contrapeso, blog que irá nascer em breve (ainda só tem cabeçalho) e onde contarei com a vossa presença sempre que quiserem.
* D. Maria Afonso dos Santos Silva, proprietária e cozinheira do restaurante "O Prontinho", em Oleiros, onde em minha opinião se come o melhor cabrito estonado, além de deliciosos maranhos e um "pudim alentejano" memorável (o cabrito sempre por marcação : 272682338). 


O OUTRAS COMIDAS VOLTOU!

OOutras Comidas voltou! Comigo.

Claro que podia arranjar aqui umas boas desculpas, solenes como aquelas que arranjei quando acabei com ele (já foi em 2013!), para justificar agora o regresso, mas não: o Outras Comidas regressa porque eu morria de saudades dos meus petiscos, das nossas conversas, dos vossos comentários, que o que por aqui se disse e conversou com mútuo proveito ao longo de tantos anos é afinal bem diferente, e bem melhor, do que os “likes” apressados que se vão deixando nas redes sociais por onde entretanto fui passeando.

Para alguns que só agora vão chegar, será uma novidade; para a maioria será apenas um retomar de velhas conversas; para mim será um renovado e enorme prazer!


Até já.

BUTELO COM CASULAS

        Viveu até há poucos anos escondido nos fumeiros gelados de Trás-os-Montes, no meio de outros ilustres desconhecidos, ceboleiras, chouriças de abóbora, sangueiras, azedos, unto fumado, que quando a pobreza é muita as inventiva e criatividade crescem e disfarçam de carne aquilo que há. No caso do butelo, foram ossos e pouco mais o que encheu o bucho ou a bexiga do bicho, o suficiente para o transformar na alma de um dos pratos emblemáticos da cozinha popular histórica, tradicionalmente comido com as casulas por alturas do Carnaval. Isto há muitos anos, já que quer butelo quer casulas chegaram a estar virtualmente extintos por falta de procura, a par de tantos outros, dos cuscus e de outras realidades rurais que não resistiram à desertificação do Nordeste de Portugal. Ressuscitados a partir do interesse citadino por novidade e pelas gastronomias perdidas e exóticas, bem como pelo esforço de sobrevivência, por expansão de mercados, de industrias locais, é hoje possível encontrar butelos à venda bem longe da sua área tradicional, embora a sua lógica de enchido pobre esteja definitivamente perdida, custando um butelo que, relembro, são ossos ensacados, mais caro que a maioria dos enchidos de… carne.
Os pratos assim ressuscitados, apesar da tendência para serem chamados  tradicionais, são na realidade recriações históricas, assistindo-se hoje a um refazer pela mão experimentada de chefes e gastrónomos do que poderia ter sido a sua evolução tradicional,  embora neste processo se tenda para o caminho  mais fácil de enriquecimento do prato, que é por norma despojado da sua rudeza telúrica, simples e por vezes quase estóica e embelezado ao gosto mais dado a mimos que a asperezas dos que na realidade, hoje, os comem.
O butelo que hoje aqui vos deixo, bem como as casulas que o acompanham, comprei-os à minha fornecedora de enchidos daquelas paragens, D. Aida Pires, na sua banca no Mercado Municipal de Bragança. Para a execução deste cozido, pois de um cozido se trata, optei por uma versão equidistante entre o mais histórico (e estóico) constituído apenas pelo butelo, por casulas e por batatas e as versões mais adaptadas, com várias carnes, enchidos e legumes.
Saiu almoço memorável, que se prolongou por outras refeições através de uma sopa “de panela” que, sugestão de D. Aida, constituiu alento para arrostar com um Inverno todo de frio, neve e Trás-os-Montes.

Ingredientes:

1 Butelo
Casulas (ou cascas)
Chouriço de carne
Entrecosto
Batatas
Sal
Azeite

Preparação:

As casulas são feijões que foram apanhados ainda verdes mas já formados e conservados por secagem assim na vagem. Têm por isso que ser reverdecidos, o que se faz demolhando-os em água fria por doze horas, normalmente da noite para o dia seguinte.

O butelo é este grande enchido de aspecto bizarro, todo marcado pelos ossos que contém,

pesa entre 800g e 1,3kg e coze por cerca de uma hora e meia, duas horas se for dos muito grandes, em água, juntamente com as carnes previamente salgadas e o  chouriço. As casulas, também chamadas cascas, depois de demolhadas cozem em tempos muito variáveis consoante a variedade de feijão usado, o melhor é mesmo ir provando e poderá contar com um mínimo de quarenta e cinco minutos e um máximo de hora e meia. 
Em relação ao recipiente a usar, as opiniões dividem-se, aliás como para os outros cozidos: de um lado os que acham que se deve cozer cada ingrediente (ou pelo menos cada grupo) separadamente, do outro os que gostam mesmo é da miscigenação de sabores entre as carnes e os vegetais, uns a temperarem os outros. Como em tudo o que se relaciona com comida e culinária, eu sou dos que acha que a melhor maneira de fazer seja o que for é aquela que faz a comida como nós mais gostamos dela e que bem tolo é quem come pelo gosto de outros. Eu gosto mesmo dos sabores misturados num cozido e neste foi o que fiz; esta posição não é melhor nem pior do que qualquer outra, é apenas o meu gosto, que é quem manda na comida que se destina a ser comida por mim. Faça o leitor como o seu gosto lhe pedir.
Cozi portanto o butelo, o entrecosto e o chouriço durante uma hora, após o que juntei as batatas por mais vinte e cinco minutos. Tinha cozido previamente as casulas porque não sabia ao certo quanto tempo demorariam e juntei-as ao cozido só no fim, fervinhando mais cinco minutos em conjunto para partilharem sabores e aromas entre si. Estava pronto o Butelo com Casulas

que deu este prato memorável, a pedir um fio do excelente azeite transmontano, para ser comido devagar, devagar…


Notas:
Recomendo que espere até ao fim para rectificar o sal; quer as carnes, quer o butelo, acabam geralmente por fornecer o sal necessário, sendo às vezes preciso juntar até um pouco mais de água para que o caldo não fique salgado.
Por vezes usa-se juntar também uma cebola. Não usei porque não acho que “case” bem.

A confecção deste cozido gera um caldo espantoso, que é um crime deitar fora. Com umas folhas de couve, alguma cenoura ou abóbora, restos desfiados das carnes que tenham sobejado e mais uma boa fervura, fica feita uma “sopa de panela” que, com umas massas ou sobre umas fatias de pão duro, fazem outra refeição inesquecível.

CARAS DE BACALHAU, COM TODOS

             Depositário de tradições que remontam aos tempos difíceis em que tudo se aproveitava, o bacalhau é exemplo acabado de animal do qual tudo se pode usar, ou quase. Para além das postas, aproveitam-se ainda as caras, as línguas, o espinhaço, os sames, os fígados para fazer o tenebroso óleo de fígado de bacalhau, até cola se pode fazer a partir de bacalhau!
As caras de bacalhau são uma das partes mais esquecidas do bacalhau,
cada vez mais a consumirem-se apenas as partes nobres, obrigando a indústria a transformar em “migas” tudo o que sobeja para além das línguas, das postas altas e dos lombos do bacalhau. Correspondem à parte inferior da cabeça, sem a prega a que se chama “língua” e vai até ao nível da órbita; se dobrarmos uma cara de bacalhau veremos surgir de novo a forma familiar de uma cabeça de peixe.
Como com todas as cabeças de peixe, as caras de bacalhau não são uma comida consensual: como fígado, favas ou tutano, as caras amam-se ou odeiam-se. Sou dos que ama esta parte do “fiel amigo” e assisto com pena ao progressivo desaparecer desta iguaria das ementas da maioria das casas portuguesas.

Ingredientes:

Caras de bacalhau
Sal
Cenouras
Batatas
Cebolas
Couve verde
Ovos
Alhos
Pimenta preta, azeite e vinagre

Preparação:

As caras de bacalhau vendem-se em salmoura seca, o que significa que foram salgadas e semi-desidratadas pelo sal mas não passaram por secagem ou sol.

Como com todas as salmouras, necessitam de uma dessalagem prolongada, maior ainda que a necessária para postas, pelo que é aconselhável aproveitar o tempo frio para fazê-lo ou dessalar dentro do frigorífico até que as bochechas percam o excesso de sal, processo difícil por estas se encontrarem parcialmente dentro do osso.
A cozedura de uma cara de bacalhau é ainda mais determinante para o resultado final do que acontece com as postas. Aqui, é absolutamente interdita qualquer fervura, que tornaria fibrosa a carne suculenta das bochechas. Pode fazê-lo de dois modos: ou utiliza a água onde cozeu os acompanhamentos, colocando as caras sobre estes mas já com o lume apagado e deixa por alguns minutos, ou coze as caras à parte, em água a partir de fria, apagando o lume antes de se começar a esboçar qualquer vestígio de fervura. Pessoalmente, prefiro este método separado, mas o resultado não difere sensivelmente.
Depois, com um dente de alho picado, regado de bons azeite e vinagre, é gozar este festim, o melhor de dois mundos: num só prato tem o amado bacalhau e ao mesmo tempo uma cabeça de peixe. Que mais se poderia desejar?



Cachaço fechado no “emaille Brattopf”

EmailleBrattopf”, cuja tradução literal do alemão fica bastante estranha, algo como “panela ou cuba de torrar em esmalte”, designa afinal este maravilhoso utensílio em ferro totalmente esmaltado que faz parte dos artefactos existentes em qualquer cozinha familiar austríaca onde desempenha o papel que entre nós damos às panelas de ferro com pés, às cataplanas, às caçarolas, púcaras e demais recipientes para cozinhar fechados por uma tampa.. 
 Esta Brattopf  em ferro e com um esmalte espantoso tem ainda a vantagem de ser especialmente adaptada a cozinhar no forno e na cozinha austríaca quase tudo se pode fazer aqui, até pão!
Oferta recente da minha filha que reside em Viena, decidi estrear o meu novo “brinquedo” culinário assando nele, devagar, a peça do porco que prefiro entre todas, o cachaço, aproveitando todas as potencialidades da atmosfera húmida no que respeita à conservação de sucos, deste segundo pequeno forno dentro do grande forno.
Claro que não estou a sugerir que façam uma viagem à Áustria para adquirirem um Brattopf (mas se lá forem não deixem de trazer um), até porque se pode obter o mesmo efeito numa caçarola esmaltada que possa ir ao forno (atenção às asas).

Ingredientes:

Cachaço desossado
Sal, pimenta, alhos, pimenta da Jamaica e pimentão doce fumado
Vinho branco
Banha
Cebolas

Preparação:

O cachaço é a peça de onde se costumam cortar as costeletas do mesmo nome, também chamadas do fundo. Depois de retirado o osso, fornece uma carne suave e suculenta, cheia de veios gordos que lhe dão um sabor único. Geralmente, sai mais em conta comprar o bloco com osso a preço de costeletas do fundo e desossar depois ou mandar fazê-lo no talho, aproveitando ainda uns ossos do espinhaço para fazer um caldo ou enriquecer uma sopa.
Deixe o cachaço por vinte e quatro horas no frigorífico, mergulhado em água gelada a que adicionou sumo de limão (ou vinagre). Isto serve para que a carne se hidrate e perca qualquer excesso de sangue que contenha.
Seque a peça, tempere-a com sal, pimenta moída, alho esmagado, pimenta da Jamaica e pimentão doce fumado,
envolva-a com película plástica ou feche-a num saco e deixe no frio por mais um dia.
Lave bem a peça num copo de vinho branco, de modo a retirar os temperos que se queimariam a seguir dando mau sabor ao cozinhado e reserve o vinho da lavagem.
Seque o cachaço e sele-o numa frigideira em banha e lume muito forte, todo à volta até estar uniformemente alourado.

Forre o fundo do recipiente de forno com rodelas de cebola com um centímetro de espessura, coloque sobre elas a carne selada (sem a picar), regue com o vinho temperado,
tape e leve ao forno a 160ºC por 90 minutos, sem destapar.
O tempo no forno depende de muitos factores, de entre os quais avulta o tamanho do cachaço, que pode ir de 750g a 2kg. A partir da hora e meia de forno, deverá medir a temperatura no interior da peça com intervalos de 15 minutos, utilizando sempre o mesmo furo para não secar a carne. Retire quando a temperatura no centro do cachaço atingir 80ºC.
Haverá uma grande quantidade de líquido a rodear a carne.
Reduza-o levando-o ao lume forte numa frigideira destapada e volte a juntá-lo à carne.
Tendo ficado sempre protegida pela atmosfera húmida que se formou dentro da caçarola, a carne assou devagar e manteve o seu interior rosado e suculento.

Sirva com os acompanhamentos que mais gostar.





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